sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O TEÍSMO ABERTO E AS SAGRADAS ESCRITURAS

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.).

1 INTRODUÇÃO

O Tesísmo Aberto, ou “Teologia Relacional”, como é conhecido no Brasil, foi motivo de acentuado debate à alguns anos, em virtude da aderência a esta corrente teológica por parte de alguns pastores que gozavam de relevante popularidade e influência.

Embora o movimento não tenha saboreado a receptividade esperada, arrefecendo após angariar numerosas críticas das posições históricas (calvinismo e arminianismo), as quais, ainda que conflitantes, uniram-se a fim de refutar aquela, o Teísmo Aberto permanece vivo no ambiente eclesiástico e acadêmico, tendo demonstrado, principalmente em seus pronunciamentos nesta última esfera, bastante produtividade, como comprovam os livros e artigos de seus proponentes que continuam a proliferar-se ano após ano.

Assim sendo, cremos fazer-se indispensável uma exposição, ainda que breve, de sua proposta, afim de constatarmos se esta apresenta-se como uma abordagem teológica sadia, que merece ser estudada e considerada como genuína alternativa bíblica para os temas a que se propõe responder, ou se deve ser rejeitada e combatida com intrepidez, por revelar um caráter não-bíblico e ofensivo ao Deus da Revelação.

Principiaremos apresentando aquilo que parece ser a base sob a qual se fundamenta a visão aberta de Deus, prosseguindo através de uma síntese das principais características que compõem o ensino geral do Teísmo Aberto. A partir daí, veremos algumas proposições teológicas e filosóficas que claramente influenciaram na formulação de seu pensamento, para logo em seguida abordarmos seu desenvolvimento prático, findando com o indispensável escrutínio bíblico da matéria em questão.

2 O TEÍSMO ABERTO E O AMOR DE DEUS: O ATRIBUTO EXALTADO

Deus é amor! Este tem sido o maior slogan cristão dos nossos tempos. Sem dúvida, Deus é amor! É maravilhoso saber que entre Seus atributos encontra-se o amor. Assim como Deus é imutável (“Porque eu, o Senhor, não mudo” [Ml 3.6[1]]) e Eterno (Gn 21.33; Dt 33.27; Jr 10.10), Ele “é amor” (1 jo 4.8), e por isso podemos confiar e nos alegrar na palavra que diz: “com amor eterno eu te amei”(Jr 31.3). Desde o princípio Deus era e continuará sendo pelos séculos dos séculos o “Deus de amor” (2 Cor 13.11); Ele não ama hoje e amanhã deixa de amar. Seu amor permanece inabalável a preencher os recipientes de Sua misericórdia. Ou, nas palavras de Bavinck (2001, p. 150), “Esse amor não é sujeito ao tempo e ao espaço, mas está acima tanto de um quanto de outro, e vem da eternidade para o coração dos filhos de Deus”.

Deus é perfeito e o amor é uma das perfeições de Seu caráter. Deus não pode ser mais amoroso, ou menos amoroso, pois de outra forma Ele não seria perfeito; haveria algo ainda a ser melhorado, ou acrescentado, ao Ser de Deus. Portanto, Deus ama na medida certa. Contudo, quanta confusão se tem levantado sempre que se eleva um dos atributos de Deus acima dos demais. Por exemplo: através da ênfase na Onipresença e na Imanência de Deus, chegou-se ao Panteísmo, onde Deus (um ser impessoal) e o cosmos são indistintos. Sendo assim, Deus é tudo e tudo é igualmente Deus. Do mesmo modo, através da ênfase na Transcendência divina, chegou-se ao agnosticismo, onde qualquer conhecimento acerca da Divindade torna-se plenamente impossível. Da ênfase na Onipotência e Onisciência, originou-se o Fatalismo mórbido, que coloca o homem na condição de um ser passivo e inerte, negando-lhe qualquer tipo de responsabilidades. Mesmo que seja o amor, um dos considerados mais sublimes atributos de Deus, este também não pode ser colocado acima, como gerenciador, dos demais atributos do Ser de Deus, pois todos eles coexistem igualmente. No entanto, a ênfase no amor de Deus tem sido marca registrada desta geração e tem trazido drásticas conseqüências para a igreja. O “Teísmo Aberto” é inquestionavelmente marcado por esta ênfase.

3 O QUE ENSINA O TEÍSMO ABERTO?

Em síntese, o “Teísmo Aberto” (ou “Teologia Relacional”) ensina que, por amor, Deus trouxe à existência criaturas e quis relacionar-se com elas, mas, para que este relacionamento fosse verdadeiro, estas pessoas precisavam ser totalmente livres; por isso, Deus, em amor a este relacionamento, abriu mão de Sua soberania, erguendo-se do trono do universo e unindo-se aos agentes livres que criou, para juntamente com Eles construir o futuro. Deus também deixou de lado Sua Onisciência, pois, não haveria um relacionamento de fato livre se ele soubesse o que faríamos amanhã, por isso, Deus poderia saber tudo acerca do passado e do presente, mas não do futuro. Na verdade, o conceito de onisciência é redefinido por esta visão. Como expressa Pinnock, um dos maiores propagadores da visão aberta de Deus:

Vemos o futuro não como totalmente estabelecido, e isto, é claro, relata os riscos que Deus encara no futuro. Nossa segurança advém, não da crença de que Deus conhece tudo exaustivamente (uma visão que questionamos biblicamente), mas da crença que ele tem a sabedoria para lidar com qualquer surpresa que se levante (apud REYMOND, 2011, p. 347).

Este relacionamento também continuaria não sendo livre se Deus interferisse nas atitudes livres de Suas criaturas sempre que algo não saísse de acordo com Seus planos, por isso Deus mutilou Sua Onipotência, podendo tudo, mas nada fazendo sem consentimento prévio de todos os agentes livres envolvidos na situação.

4 O TEÍSMO ABERTO E SUA ORIGEM

Uma boa pergunta a se fazer seria: como os proponentes desta corrente teológica chegaram a estes conceitos? Alguns de seus partidários afirmam veementemente que tais concepções são fruto de profunda reflexão filosófico-teológica, o que garantiria a originalidade da perspectiva. Na verdade, um de seus congressos no Brasil chegou a receber o tema: “Um Novo Deus no Mercado”. Contudo, uma breve retrospectiva nos mostrará que o ensino do Teísmo Aberto encontra precedentes em velhas propostas refutadas a muito pelo cristianismo histórico.

4.1 O teísmo aberto e a filosofia grega

De acordo com Lopes (2008, p. 12), “Algumas das idéias da Teologia Relacional têm uma impressionante semelhança com as especulações dos filósofos gregos”, como por exemplo, “o livre-arbítrio libertário” que traz “a idéia de que o arbítrio humano é completamente independente de forças externas e internas e, portanto, totalmente livre em tomar decisões. Isso ocorre porque o mundo e a história são governados pelo acaso”.

Há também o conceito da “limitação de Deus”. “Os deuses da mitologia grega, cantados na Odisséia e na Ilíada de Homero, são concebidos como seres finitos e limitados, que não governam o mundo de acordo com sua vontade, mas espreitam os homens e suas decisões, intervindo algumas vezes” (LOPES, 2008, p. 12).

Por fim, Lopes cita “o conceito de um futuro aberto e indeterminado” onde “encontramos a idéia de um mundo autônomo, funcionando por si mesmo, já que não havia deuses que determinassem seu curso, e visto que as decisões humanas eram imprevisíveis”. Tais idéias, como esposadas acima, “[...] podem ser encontradas em filósofos como Tales, Epicuro, Platão e Aristóteles, para mencionar alguns” (LOPES, 2008, p. 13), e mantêm plena correspondência com a visão aberta de Deus.

4.2 O teísmo aberto e o arminianismo

Apesar de tantas semelhanças entre os conceitos do Teísmo Aberto e da filosofia grega, para Lopes, “A maior influência na Teologia Relacional, sem dúvida é o arminianismo” (2008, p. 13). Segundo ele:

Podemos afirmar inclusive que ela é um desenvolvimento lógico do arminianismo, ou ainda, o arminianismo levado às suas últimas consequências [...] O ponto central do arminianismo é que a salvação depende da decisão humana. É o homem, com seu livre-arbítrio, quem decide o seu futuro e, portanto, o futuro da raça humana. A salvação foi dada por Deus mas ela só é eficaz se o homem decidir aceitá-la.” (LOPES, 2008, pp. 13, 15)

Em seu livreto “Os cinco pontos do calvinismo”, Seaton (pp. 3, 4) faz distinção entre a visão calvinista e a arminiana, relacionando os cinco pontos do arminianismo da seguinte maneira: “1. Livre-arbítrio, ou capacidade humana [...] 2. Eleição condicional [...] 3.Redenção universal, ou expiação geral [...] 4. A obra do Espírito Santo na regeneração limitada pela vontade humana [...] 5. Cair da graça”. A este respeito, Lopes (2008, p. 15.) escreve: “A Teologia Relaconal concorda com praticamente todos os pontos da interpretação arminiana da salvação com exceção daquele que fala da presciência de Deus [eleição condicional], que Deus anteviu a escolha dos que haveriam de ser salvos”.

4.3 O teísmo aberto e o socinianismo

De acordo com Lopes (2008, p. 16), Socinianismo “[...] é o nome que se dá a outra corrente teológica do século XVI originada nas idéias dos italianos Lélio Socínio (1525-1562) e seu sobrinho Fausto Socínio (1539-1604)” os quais “[...] negavam em seus escritos a deidade de Cristo, Sua morte vicária na cruz e a imputação da Sua justiça aos pecadores arrependidos. Suas idéias eram tão heréticas que foram condenadas pelos católicos e pelos protestantes”.

A similaridade entre estas duas visões é justamente o trato dispensado para com a presciência divina.

[...] Lélio e Fausto argumentaram que os calvinistas estavam, a princípio, logicamente corretos em dizer que o conhecimento que Deus tem do futuro se baseia no fato que o próprio Deus havia determinado tudo o que vai acontecer. Deus sabe as coisas que vão acontecer porque Ele mesmo determinou essas coisas. Todavia, eles prosseguiram a argumentar que os arminianos estão corretos quando dizem que é inadmissível pensar que Deus determinou tudo que vai acontecer, pois isso anula a liberdade humana. Logo, para que se possa preservar a plena liberdade do homem, é preciso negar não somente que Deus preordenou as decisões livres de agentes livres, mas também que Deus conhece de antemão quais serão tais decisões. E assim, os socinianos foram além do calvinismo e do arminianismo, negando a soberania de Deus (calvinistas) e também a Sua presciência (arminianos) [...] É exatamente esse o ensino da Teologia Relacional quanto à presciência de Deus [...] A semelhança é notável, até mesmo nos detalhes. Os socinianos diziam que a onisciência de Deus significava que Deus conhecia tudo o que era possível de ser conhecido. Como as decisões livres dos seres humanos eram impossíveis de serem conhecidas – exatamente porque eram livres – Deus não podia ter conhecimento delas. Os teólogos relacionais argumentam da mesma forma, redefinindo a onisciência de Deus de maneira similar” (LOPES, 2008, pp. 16, 17, 18.).

A conclusão é óbvia: “Se o homem tem livre-arbítrio e as coisas podem ser diferentes, Deus não pode ser onisciente” (CLARK, 2010, p. 52). Socinianos e Teístas Abertos preferiam resguardar a liberdade humana em detrimento da onisciência divina.

4.4 O teísmo aberto e a teologia do processo

O Teísmo Aberto também possui laços mais fortes do que gosta de admitir com a corrente teológica que atende pelo nome de Teologia do Processo.

Existe [...] uma semelhança visível entre a relação de Deus com o tempo defendida pela Teologia Relacional e aquela da Teologia do Processo. É verdade que os teólogos relacionais criticam a Teologia do Processo; todavia, não conseguiram se distanciar o suficiente para evitar a sua influência [...] De acordo com o cristianismo clássico, o Deus eterno criou o tempo e vive fora dele. Dessa forma, ele pode contemplar simultaneamente o passado, o presente e o futuro, como se fossem janelas ou telas abertas diante dEle. A Teologia do Processo nega esse conceito e defende que a realidade está em processo de mudança constante e que Deus evolui e progride dentro dessa realidade. Os teólogos relacionais admitem que Deus vive no tempo, mas discordam que isso faça parte essencial da Sua existência. Afirmam que ele optou por viver no tempo para poder Se relacionar de forma amorosa e significativa com Suas criaturas [...] apesar das críticas à Teologia do Processo, a Teologia Relacional afirma que Deus vive dentro do tempo, sujeito ao passar do tempo e às mudanças que isso proporciona. Ao final, temos de lidar com um Deus que, à nossa semelhança, aprende e evolui com o passar do tempo e não pode saber com exatidão o que nos aguarda no futuro. (LOPES, 2008, pp. 19,20).

Percebe-se com isso que o atributo divino da imutabilidade é completamente ignorado, prejudicando assim a perfeição da deidade, pois, como tem sustentado a ortodoxia cristã ao longo dos séculos, “Se o ser de Deus possui toda a perfeição possível, então qualquer mudança nele deve ser para a pior. Por ser imutável, não pode piorar. E por deter toda a perfeição, ele não tem necessidade de se alterar ou passar por um desenvolvimento” (CHEUNG, 2008, p. 84). Estariam os defensores da visão aberta e da teologia do processo dispostos a sustentar a idéia de que o deus a quem cultuam, em virtude de seu desenvolvimento, pode estar pior hoje do que a dois mil anos atrás? Tal possibilidade deve ser admissível em seus sistemas de pensamento.

Outra semelhança é “[...] a crítica de que a teologia cristã clássica foi influenciada por idéias da filosofia grega quanto a formulação da doutrina de Deus” (LOPES, 2008, p. 21), o que constitui grande ironia, já que o Teísmo Aberto, como supracitado, importa para seu corpo doutrinário uma gama de conceitos da visão grega. Ambas as posições, Teologia do Processo e Teísmo Aberto, defendem também:

[...] uma reformulação da doutrina clássica a respeito de Deus. A onisciência de Deus deve ser entendida como Seu conhecimento de tudo que pode ser conhecido – menos o futuro que ainda não aconteceu. A onipotência é entendida como poder perfeito, mas Deus não tem monopólio dele. Ele tem todo o poder possível a um ser. Não que Seu poder seja ilimitado. Ele é somente o maior. Portanto, Deus nunca pode determinar um evento, ou que alguma coisa aconteça irreversivelmente. Seu poder é coercivo, nunca determinativo. Todas essas idéias são também defendidas pelos teólogos relacionais” (LOPES, 2008, pp. 21, 22).

5 ASPECTOS PRÁTICOS DO TEÍSMO ABERTO

Veja o Deus de amor do Teísmo Aberto em ação. Imagine a cena: um homem viciado em crack sai pelas ruas com uma arma na mão; ele quer mais dinheiro para sustentar seu vício. Numa rua sem movimento e mal iluminada, uma jovem caminha rumo à estação de metrô. Ela se atrasou no trabalho e saiu mais tarde que o habitual. O encontro é inevitável e Deus assiste tudo. Repentinamente, o homem saca a arma. A jovem tenta fugir e ele dispara. Ela cai morta e ele vai embora com o dinheiro, encerrando assim o trágico episódio.

Segundo o Teísmo Aberto, Deus nada podia fazer, pois, se o fizesse, violaria a liberdade (livre-arbítrio) daqueles agentes livres. Deus não sabia o que aconteceria, pois haviam muitas ações livres implícitas na questão e tudo o que Deus conhece são as possibilidades. Aquilo machucou profundamente o coração de Deus e ele certamente estava torcendo para que nada de mal acontecesse, mas não havia nada que Ele pudesse fazer, senão lamentar angustiadamente. “E quanto ao propósito? Deve haver algum propósito em todo este caso lamentável.” – alguém perguntaria. O deus do Teísmo Aberto diz: “Não! Foi tudo uma fatalidade”.

Bruce A. Ware (2010, pp. 13, 14), ilustrando a visão do “Teísmo Aberto” acerca do sofrimento, escreve:

Quando a tragédia entrar em sua vida, por favor, não pense que Deus tem algo a ver com isso! Deus não deseja que a dor e o sofrimento ocorram e, quando isso acontece, ele se sente tão mal com a situação como aqueles que estão sofrendo. Não pense que, de alguma maneira, essa tragédia deva cumprir algum propósito final. É bem possível que não seja assim! O mal que Deus não deseja acontece a todo momento e, com freqüência, não serve para nenhum bom propósito. Porém, quando sobrevém a tragédia, podemos confiar que Deus está conosco e nos ajuda a reconstruir o que se perdeu. Afinal, de uma coisa temos certeza, a saber: Deus é amor. Então, embora não possa evitar que uma boa parcela de coisas ruins aconteça, ele sempre estará conosco quando elas acontecerem.

6 O TEÍSMO ABERTO VERSUS A SAGRADA ESCRITURA

Será que a Bíblia se engana ao relatar o episódio de Atos 4.27-28? “De fato, Herodes e Pôncio Pilatos reuniram-se com os gentios e com o povo de Israel nesta cidade, para conspirar contra o teu santo servo Jesus, a quem ungiste. Fizeram o que o teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que acontecesse” (NVI).

Não lemos aqui que todo o sofrimento que sobreviera a Jesus fora determinado por Deus? Deus estava por trás de tudo isso, inclusive das ações, supostamente “livres”, dos ímpios. Como Pink (2001, p. 28) bem expressou:

Deus sabia da crucificação do Seu Filho e a predisse muitas centenas de anos antes que Ele se encarnasse, e isso, porque, segundo o propósito divino, Ele era o Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Portanto, lemos que Ele “... foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus...” (Atos 2:23).

É importante destacar aqui que tal acontecimento não fora destituído de propósito, mas pelo contrário, foi por meio deste sofrimento que recebemos a salvação!

E o que dizer sobre o diálogo entre Deus e Ananias a respeito do apóstolo Paulo? Conforme Atos 9.15-16, lemos: “Mas o Senhor disse a Ananias: ‘Vá! Este homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel. Mostrarei a ele o quanto deve sofrer pelo meu nome” (NVI). Como, pela visão do “Teísmo Aberto”, responder a passagens como essas sem desrespeitar (ou até mesmo violentar) o texto bíblico? Só podemos afirmar com Ware (2010, p. 21) que:

A visão aberta rebaixa Deus, pura e simplesmente falando. Tenta tornar mais significativa a escolha e ação humanas, a custa da própria grandeza e glória de Deus. O Deus do teísmo aberto é muito limitado, simplesmente por ser menos que o majestoso, pleno conhecedor, todo-sábio Deus da Bíblia.

O deus do Teísmo Aberto não sabe e não pode. Está cego quanto ao futuro. Tem a boca fechada e as mãos amarradas para não interferir nas livres escolhas (livre-arbítrio) de seus agentes livres. Está limitado pelo poder das suas criaturas.

O Teísmo Aberto tira o controle remoto do mundo das mãos de Deus e o coloca nas mãos dos homens. É o antropocentrismo entronizado. É um deus extremamente debilitado e não o Deus das Escrituras, sobre o qual lemos: “Porque o domínio é do Senhor, e ele reina sobre as nações” (Sl 22.28); “Mas o nosso Deus está nos céus; ele faz tudo o que lhe apraz” (Sl 115.03). Sobre Sua onisciência: “[...] Eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Is 46. 9,10). Eis aqui mais uma visível distinção, pois, o Deus das Escrituras “[...] reivindica para Si a presciência sobre os acontecimentos futuros, desafiando os deuses falsos (Is. 41:22)” (DAGG, 2003, p. 53), enquanto o Deus do Teísmo Aberto permanece na ignorância. Como disse C. S. Lewis (2008, p. 226): “Todos que crêem em Deus acreditam que ele sabe o que eu e você faremos amanhã”.

Buscando resguardar a plena liberdade da criatura, a visão aberta de Deus acaba restringindo a liberdade do Criador. É exatamente neste ponto que o Teísmo Aberto mais uma vez se mostra deficiente, pois em lugar algum nas Escrituras lemos sobre uma criatura plenamente independente de seu Criador. Para sustentar tal coisa, Clark (2010, p. 53) afirma que a própria “[...] doutrina da criação deve ser abandonada”, pois, “Uma criação ex nihilo estaria completamente no controle de Deus”, visto que “Forças independentes não podem ser forças criadas, e forças criadas não podem ser independentes”. Sendo assim, mesmo a Revelação Geral é suficiente para mostrar a necessidade de um Deus Soberano e sustentador de todas as coisas (Heb. 1:3).

Reymond (2011, p. 354), por exemplo, baseado nos estudos em biometereologia de Sallie Tisdale (“Weather’s Unseen Power”, Outside [Dezembro 1995]) aponta para o fato de como o clima, o qual é mantido e determinado por Deus (Gên 8:22), pode influenciar os seres vivos, inclusive em suas decisões, e então escreve (em resposta a doutrina do livre-arbítrio sustentada por Pinnock):

[...] assumindo, novamente por causa do argumento apenas, que a vontade do homem seja normalmente livre, mesmo Pinnock não negará que causas desconhecidas a eles podem influenciar e mesmo forçar pessoas a escolherem um ao invés de outro curso de ação. O clima, por exemplo, – no mínimo, às vezes desconhecido para nós – afeta como sentimos, o que, por sua vez, influencia nossas escolhas. Doenças presentes em nosso corpo das quais estamos inconscientes (por exemplo, tumores cerebrais) podem nos levar, enquanto presumimos o tempo todo nossa sanidade, a tomar decisões irracionais. Os pais, muito tempo depois de mortos, através de seus ensinos e exemplos em nossos anos de formação, freqüentemente agora, sem que estejamos cientes disso, ainda exercem uma poderosa e determinante influência sobre nós em nossos anos adultos (Prov. 22:6). O problema que se levanta é este: como pode qualquer homem conhecer com certeza, quando escolhe um curso específico de ação, que era completamente livre de todas estas causações externas ou internas? [2]

A este respeito, Clark (apud REYMOND, 2011, p. 354) declara:

A conclusão é evidente, não é? Para sabermos que nossa vontade não é determinada por qualquer causa, devemos conhecer todas as causas possíveis no universo inteiro. Nada poderia escapar de nossas mentes. Ser consciente do livre-arbítrio, portanto, requer onisciência. Desde que não há consciência do livre-arbítrio: o que seus expoentes tomam como consciência do livre-arbítrio é simplesmente a inconsciência do determinismo. [3]

No século XVI, Lutero travou sua própria batalha quanto à questão do livre-arbítrio. Pink (2001, p. 39) registra que “Numa de suas cartas a Erasmo, disse Lutero: ‘As tuas idéias sobre Deus são demasiado humanas”. Podemos dizer a mesmíssima coisa no que se refere à teologia sustentada pelo Teísmo Aberto.

Portanto, O deus do Teísmo Aberto só nos deixa o desespero, pois um deus que não seja o “Todo-Poderoso” que “reina” (Ap 19.6; 15.3 - ó Rei dos séculos) e conhecedor de “todas as coisas” (1 Jo 3.20 - inclusive “as coisas que ainda não sucederam” - Is 9.10]) não é digno de confiança nem tem autoridade para fazer cumprir suas promessas. “Quanto à visão aberta, só se pode dizer o seguinte: ‘O Deus deles é limitado demais!’” (WARE, 2010, p. 20).

Como Pink (2001, pp. 40, 41) escreveu, “Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é derrotado, nada possui que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno objeto de culto, só merece desprezo”.

7 CONCLUSÃO

Concluímos, por tudo que foi apresentado até aqui, que o Teísmo Aberto confronta as doutrinas basilares do cristianismo histórico, contradizendo o claro ensino das Escrituras e apresentando uma perspectiva acerca de Deus que está muito aquém daquela sustentada pela ortodoxia cristã.

Deus disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14), e é assim que devemos adorá-Lo; não tentando fazer de Deus aquilo que Ele não é ou o que queremos que Ele seja. Continua pertinente e atual a acusação de Pink de que: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem “deuses” de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais” (PINK, 2001, p. 40).

Devemos atentar para o fato de que aquele que adora outros deuses, por mais amorosos que possam parecer estes outros deuses, está sujeito ao juízo do Senhor, que diz: “Certamente perecerá” (Dt 8.19), e o “profeta que tiver a presunção de falar [...] em nome de outros deuses, esse profeta morrerá” (Dt 18.20).

“Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20.3). Este é o mandamento mais quebrado e o pecado mais cometido em nossa geração. O Teísmo Aberto tem sido responsável por estimular e propagar tal pecado, devendo ser rejeitado como a teologia de um outro “deus”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAVINCK, H. Teologia Sistemática. Santa Bárbara d’Oeste: Socep, 2001.

CHEUNG, V. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Arte Editorial, 2008.

CLARK, G. H. Deus e o Mal: o problema resolvido. Brasília: Editora Monergismo, 2010.

DAGG, J. L. Manual de Teologia. São José dos Campos: Fiel, 2003.

LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LOPES, A. N. Teologia Relacional: Suas origens, seus ensinos, suas conseqüências. São Paulo: Ed. PES, 2008.

PINK, A. W. Os Atributos de Deus. São Paulo: Ed. PES, 2001.

REYMOND, R. L. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashiville: Thomas Nelson, 2011.

SEATON, W. J. Os Cinco Pontos do Calvinismo. São Paulo: Ed. PES.

WARE, B. A. Teísmo Aberto: a teologia de um deus limitado. São Paulo: Vida Nova, 2010.


[1] Os textos bíblicos utilizados aqui foram extraídos, em sua maioria, de BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. Aqueles que divergirem desta tradução serão devidamente identificados.

[2] But assuming, again For the sake of argument only, that man’s will is normally free, even Pinnock will not deny that causes unknown to them can influence and even force people to choose one rather than another course of action. The weather – at least sometimes unknown to us – affects how we fell, for instance, which in turn influences our choices. Diseases present in our body of which we are unaware (for example, brain tumors) can cause us, while we presume all the while our sanity, to make irrational decisions. Parents long dead, through their teaching and example in our formative years, often now without our being aware of it, still wield a powerful determining influence upon us in our adult years (Prov. 22:6). The problem that arises is this: How can any man know for sure, when he has chosen a specific course of action, that he was completely free from all such external or internal causation?

[3] The conclusion is evident, is it not? In order to know that our wills are determined by no cause, we should have to know every possible cause in the entire universe. Nothing could escape our mind. To be conscious of free will therefore requires omniscience. Hence there is no consciousness of free will: what its exponents take as consciousness of free will is simply the unconsciousness of determinism.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O MARCIONISMO E O CÂNON

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E, T. C. S.)

1 INTRODUÇÃO

Voltaremos nossa atenção neste trabalho para o movimento cismático oriundo do segundo século que ficou conhecido como Marcionismo. Explanaremos os desafios gerados a partir das idéias de Marcião e suas conseqüências para a cristandade de então.

Principiaremos com uma apresentação das principais características do pensamento marcionita, e em seguida abordaremos o modo como a igreja reagiu diante desta nova situação.

Sabemos que de tempos em tempos velhas idéias, que a muito pareciam mortas ou adormecidas, costumam reaparecer, com maior ou menor força, travestidas de um espírito de originalidade em busca de novos adeptos. Objetivamos com o presente estudo prevenir os cristãos contemporâneos contra estes erros teológicos que, embora pareçam distantes e insustentáveis na presente era, ainda podem facilmente ser percebidos em certa medida, nos discursos de muitos líderes da atualidade.

2 O PENSAMENTO MARCIONITA

O nome Marcionismo deriva de seu fundador, Marcião (110 – 160 d. C.), ou Márciom como pode ser encontrado em alguns livros de história. Este, “[...] era filho do bispo de Sinope, na região do Ponto” (GONZÁLES, 2009, p. 98), todavia passou a sustentar uma posição teológica bem diferente da ortodoxia cristã, o que o levou a ser excomungado no ano 144 d. C.

Sobre este período, Gonzáles (2009, p. 99) escreve: “No ano 144, Márciom foi a Roma, onde conseguiu vários seguidores, e até alguns pensaram em fazê-lo bispo. Mas com o tempo, o resto dos cristãos decidiu que seus ensinos contradiziam a fé, e Márciom criou sua própria igreja, que perdurou por vários séculos”.

Segundo Hägglund (2003, p. 28), a doutrina de Marcião “[...] é similar ao gnosticismo em vários pontos”, o que teria levado a sua inclusão “[...] entre os gnósticos pelos Pais Eclesiásticos”. A este respeito, Cairns (2008, p. 84) diz que “Marcião e seus seguidores parecem ter sido os mais influentes dos grupos ligados ao gnosticismo”.

No que diz respeito a seu ensino, Marcião “[...] parece ter sentido duas fortes antipatias: contra este mundo material e contra o judaísmo. Portanto, sua doutrina combina estes dois elementos” (GONZÁLES, 2009, p. 99). Conforme Cairns (2008, p. 84), “Por entender que o judaísmo era mau, odiava a Bíblia Hebraica e o Javé nela apresentado”, chegando a “[...] estabelecer um contraste radical entre o Antigo e o Novo Testamento” (GRANCONATO, 2010, p. 75).

Marcião sustentava uma visão dualista em sua teologia. Para ele, Jeová, o Deus dos hebreus, era “[...] um ser mau e vingativo, desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos, criador da matéria, autor do mal e originador da Lei” (GRANCONATO, 2010, p. 76), tendo outros dois planos abaixo de si, onde encontravam-se os anjos e a matéria. Porém, havia ainda um Deus bom e verdadeiro, o Pai de amor revelado em Jesus, o qual ficava num plano superior ao de Jeová. Para Marcião, conforme registrado por Gonzáles:

Foi Jeová que fez este mundo. O propósito do Pai não era que houvesse um mundo como este, com todas as suas imperfeições, mas que houvesse um mundo puramente espiritual. Mas Jeová, seja por ignorância ou por maldade, fez este mundo, e nele colocou a humanidade (2009, p. 99).

Como seu entendimento, seguindo as concepções gnósticas, era o de que a matéria era má, ele interpretava o papel de Cristo na história da redenção como tendo sido enviado pelo Pai e manifestado como homem “[...] para abolir a Lei e os profetas, bem como todas as obras do perverso criador” (GRANCONATO, 2010, p. 76).

Citando o historiador Roque Frangiotti, Granconato (2010, p. 76) nos informa que no conceito Marcionita, Cristo teria se revestido de uma corporeidade apenas aparente, “[...] pois se assumisse a matéria ficaria sob o poder do criador maligno e não alcançaria seu alvo final que era libertar as almas de todos os homens do plano material”. Com isso, além de pregar “[...] a forma mais crua de universalismo”, pois, no conceito Marcionita, como Matos (apud GRANCONATO, 2010, p. 76) bem esclarece, “O Deus verdadeiro perdoa todos os pecados e assim toda a humanidade será salva”, visto que “A salvação é do espírito, não do corpo”, Marcião ainda declara abertamente seu posicionamento Docetista.

Por seus ensinamentos, ele acabou angariado a antipatia de muitos cristãos, dentre eles, alguns memoráveis, como é o caso do respeitável bispo de Esmirna, do qual se lê que “Marcião [...] certo dia, indo ao encontro de são Policarpo, lhe diz: ‘Reconhece-nos, Policarpo!’ Este respondeu a Marcião: ‘Eu reconheço, reconheço o primogênito de satanás.’ (QUINTA, 2002, p. 156).

Além de Policarpo, “Justino, particularmente, revela especial repugnância pelos ensinos desse herege, alistando-o entre os ‘ateus, ímpios, injustos e iníquos’ com quem os cristãos não tinham nenhuma comunhão”, acreditando ainda que “Marcião propagava suas doutrinas com o auxílio de demônios” (GRANCONATO, 2010, p. 75), conforme escreveu:

Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando seus seguidores a crer num Deus superior ao criador e, com a ajuda dos demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens, proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo, admitindo, em troca, não sabemos que outro deus, ao qual, supondo maior, se atribuem obras maiores do que àquele (JUSTINO apud GRANCONATO, 2010, p. 75).

Para defender sua doutrina, Marcião abandonou toda a revelação Veterotestamentária por consistir, nos moldes de sua compreensão, na palavra de um deus inferior (o Jeová dos judeus), rejeitando ainda aqueles escritos Neotestamentários que discordavam de seus ensinamentos, criando assim seu próprio Cânon, que sustentava como único Evangelho autorizado uma versão do “[...] Evangelho de Lucas (excetuando os capítulos 1 e 2, por serem judaicos demais) e as epístolas de Paulo (menos as epístolas pastorais)” (FISHER In COMFORT, 1998, p.106).

No entendimento marcionita, Paulo era “[...] o único que, entre os apóstolos, havia compreendido a verdadeira mensagem de Jesus”, sendo os demais “[...] judeus demais para entendê-la” (GONZÁLES, 2009, p. 100). Marcião considerava todas as citações do Antigo Testamento encontradas em Lucas e nas cartas paulinas como tendo sido inseridas nos textos sagrados por judaizantes que “[...] tratavam de adulterar a mensagem” (GONZÁLES, 2009, p. 100).

Nas palavras de Gonzáles, outros ensinos negados por Marcião, como pode-se concluir logicamente dos já supracitados, era “[...] a criação, a encarnação e a ressurreição final” (2009, p. 100). Por ter organizado uma igreja independente, “[...] com seus bispos rivais aos da outra igreja”, Gonzáles (2009, p. 100) entende que seus ensinos, portanto, “[...] tendiam a se perpetuarem”.

3 O ATAQUE MARCIONITA E A REAÇÃO DA IGREJA

A teologia de Marcião representou um dos primeiros ataques sérios a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras. Diferentemente dos demais grupos gnósticos, que inventavam “[...] toda uma série de seres espirituais, [...] o que Márciom propôs era muito mais simples” (GONZÁLES, 2009, p. 99), e justamente por suas doutrinas parecerem tão simples e lógicas, “[...] a propaganda marcionita dentro do resto da igreja era impressionante” (GONZÁLES, 2009, p. 100).

É interessante notarmos que a arma utilizada pelos Pais da igreja para reagir à heresia Marcionita fora justamente a reafirmação da Palavra de Deus como única e final autoridade inerrante e infalível.

Nenhuma Escritura é de particular interpretação: A Bíblia “toda” é “todo” o conselho de Deus e podemos chegar ao entendimento de suas partes mais obscuras comparando-as com suas partes mais claras.

Embora não houvesse ainda a preocupação em estabelecer um Cânon como “oficial” para a comunidade, os cristãos do primeiro século faziam uso dos mesmos textos bíblicos que nós hoje (somando a estes os escritos dos Pais apostólicos, que ainda hoje nos servem, embora sem a prerrogativa de inerrância e autoridade), e tinham a firme convicção de que a Verdade é preservada por Deus numa tradição pública e verificável por todos, e esta tradição é resguardada pelos bispos legitimamente instituídos por Deus, tendo sido estes ordenados mediante algum apóstolo ou outros bispos originalmente ordenados por estes mesmos apóstolos.

Quanto ao Antigo Testamento, “[...] todos, exceto os gnósticos e os marcionitas, concordavam que devia fazer parte das Escrituras” (GONZÁLES, 2009, p. 101). Ferreira e Myatt (2007, p. 130) atestam que “os livros do Antigo Testamento protestante já eram aceitos pelos judeus antes do tempo de Jesus”, e acrescentam: “A evidência dos Evangelhos apóia a noção de que o Antigo Testamento usado por Jesus era igual ao que temos hoje”.

No que diz respeito ao Novo Testamento, Ficher (In COMFORT, 1998, p.102) declara que “O princípio que determina o reconhecimento da autoridade dos escritos canônicos do Novo Testamento foi estabelecido dentro do próprio conteúdo desses escritos”. Ele aponta, para comprovação de sua posição, na direção das “[...] repetidas exortações para a leitura pública das mensagens apostólicas” em passagens como 1 Tessalonicenses 5:27 e Colossenses 4:16, por exemplo; e a reinvidicação autoral de comunicadores da Palavra de Deus, que facilmente se pode encontrar em textos como 1 Tessalonicenses 2:13, 1 Coríntios 14:37 e 2 Pedro 3:15-16 (FISHER In COMFORT, 1998, pp.102, 103).

Ferreira e Myatt nos garantem três, dentre alguns dos critérios utilizados no processo gradual de fixação do Cânon, e os dispõem da seguinte maneira: “(1) Apostolicidade. Critério que, em última instância, veio a estabelecer o cânon” (2007, p. 95), e que consistia no fato de que os textos bíblicos, para serem considerados inspirados, deveriam ter sido escritos por um apóstolo ou alguém (companheiro imediato) ligado aos apóstolos.

“(2) Reconhecimento de sua autoridade pela igreja primitiva” (2007, p. 95). Lembrando que a idéia aqui não é a de que uma igreja (concilio) infalível determina o Cânon bíblico, e sim que uma igreja falível, que milita contra o pecado no mundo, é firmada sobre a Palavra de Deus infalível, a qual se apresenta e é reconhecida por esta. Como escreveu Sproul, “[...] a igreja não ‘criou’ o Cânon. A igreja identificou, reconheceu e se submeteu ao Cânon das Escrituras. O termo usado pela igreja em concílio foi recipimus, que significa: ‘nós recebemos’” (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 129).

Bruce (2010, p.36) também asseverou:

Uma coisa precisa ser afirmada com toda ênfase: os livros do Novo Testamento não se tornaram escritos revestidos de autoridade para a Igreja porque foram formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os no cânon porque já os considerava divinamente inspirados, reconhecendo neles o valor inato e, em geral, a autoridade apostólica, direta ou indireta.

Por fim, “(3) A harmonia com os livros dos quais não havia dúvidas” (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 93). Um exemplo deste último é a epístola aos Hebreus, da qual não se sabe a autoria, mas é perfeitamente compatível com a mensagem evangélica (apostólica) do Novo Testamento.

Estes critérios foram de grande valia para os cristãos primitivos, e o reconhecimento oficial dos livros canônicos auxiliou a igreja a lidar com toda sorte de proposições teológicas que surgiram desde então.

CONCLUSÃO

Concluímos, portanto, que, ao sustentar firmemente a autoridade da Palavra de Deus, os cristãos dos primeiros séculos puderam permanecer firmes nos ensinamentos de Cristo e dos apóstolos, e assim manter a igreja longe dos desvios doutrinários ensinados pelo Marcionismo.

Ferreira e Myatt rejeitam como sendo errônea, “[...] A idéia de que o gnosticismo, o marcionismo e o montanismo obrigaram a igreja a fixar o cânon do Novo Testamento” (2007, p. 93). Contudo, podemos afirmar que tais movimentos contribuíram de alguma maneira para a aceleração do processo canônico, e concordar com Ficher (In COMFORT, 1998, p.105) quando diz que “O herético Marcião, com seu ato de definir um cânon limitado para uso próprio (c. 140 d.C.), na realidade instigou os crentes ortodoxos a se manifestarem sobre o assunto”.

Hoje, quando muitos se levantam dentro da própria igreja atacando a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras, como o fazem os adeptos da teologia liberal e neo-ortodoxa, ou selecionam para si uma porção de textos bíblicos que supostamente apóiam suas vãs filosofias e falsos ensinamentos, como no caso dos neopentecostais e carismáticos que constantemente se valem dos mesmos textos fora de contexto para propagarem sua mensagem de prosperidade, a fé na Palavra infalível do nosso Deus deve ser mais uma vez reafirmada para que a luz do Evangelho resplandeça em meio às trevas do evangelicalismo moderno, cada vez mais pragmático, secularizado e, conseqüentemente, apóstata.

É interessante recordar que nunca houve na história da igreja um concílio que tenha se reunido com o objetivo de elaborar uma comissão para investigação da canonicidade dos textos bíblicos, ainda assim, no final do séc. V já não havia qualquer dúvida acerca da inspiração dos 27 livros que compõem o Novo Testamento. Sempre, mesmo que de maneira não oficialmente organizada, existira na igreja cristã um “Padrão” (Cânon)[1] que a guiasse e mantivesse a salvo dos falsos ensinos de satanás e seus mensageiros. Apeguemo-nos, portanto, como fizeram nossos pais espirituais no passado, a este “Padrão” (Cânon) e, frente às mentiras deste mundo corrompido e idólatra, declaremos com Agostinho (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 91): “O que a minha Escritura diz, eu digo”. Ainda se faz pertinente ouvir o velho conselho de Paulo a Timóteo:

“Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido, e que desde a infância sabes as sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra.” (2 Tim 3.14-17)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento?. São Paulo: Vida Nova, 2010.

CAIRNS, E. E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2008.

COMFORT, P. W (Ed.). A Origem da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.

FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.

GONZÁLES, J. L. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 2009.

GRANCONATO, M. Eles Falaram Sobre o Inferno: a doutrina da perdição eterna nos primeiros escritos cristãos. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

HÄGGLUND, B. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 2003.

QUINTA, M. (Org.). Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2002.


[1] A palavra Cânon derivada do hebraico, qenéh, e do grego, kanóni, que podem ser traduzidas por “vara de medir, régua ou padrão.

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