MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E, T. C. S.)
1 INTRODUÇÃO
Voltaremos nossa atenção neste trabalho para o movimento cismático oriundo do segundo século que ficou conhecido como Marcionismo. Explanaremos os desafios gerados a partir das idéias de Marcião e suas conseqüências para a cristandade de então.
Principiaremos com uma apresentação das principais características do pensamento marcionita, e em seguida abordaremos o modo como a igreja reagiu diante desta nova situação.
Sabemos que de tempos em tempos velhas idéias, que a muito pareciam mortas ou adormecidas, costumam reaparecer, com maior ou menor força, travestidas de um espírito de originalidade em busca de novos adeptos. Objetivamos com o presente estudo prevenir os cristãos contemporâneos contra estes erros teológicos que, embora pareçam distantes e insustentáveis na presente era, ainda podem facilmente ser percebidos em certa medida, nos discursos de muitos líderes da atualidade.
2 O PENSAMENTO MARCIONITA
O nome Marcionismo deriva de seu fundador, Marcião (110 – 160 d. C.), ou Márciom como pode ser encontrado em alguns livros de história. Este, “[...] era filho do bispo de Sinope, na região do Ponto” (GONZÁLES, 2009, p. 98), todavia passou a sustentar uma posição teológica bem diferente da ortodoxia cristã, o que o levou a ser excomungado no ano 144 d. C.
Sobre este período, Gonzáles (2009, p. 99) escreve: “No ano 144, Márciom foi a Roma, onde conseguiu vários seguidores, e até alguns pensaram em fazê-lo bispo. Mas com o tempo, o resto dos cristãos decidiu que seus ensinos contradiziam a fé, e Márciom criou sua própria igreja, que perdurou por vários séculos”.
Segundo Hägglund (2003, p. 28), a doutrina de Marcião “[...] é similar ao gnosticismo em vários pontos”, o que teria levado a sua inclusão “[...] entre os gnósticos pelos Pais Eclesiásticos”. A este respeito, Cairns (2008, p. 84) diz que “Marcião e seus seguidores parecem ter sido os mais influentes dos grupos ligados ao gnosticismo”.
No que diz respeito a seu ensino, Marcião “[...] parece ter sentido duas fortes antipatias: contra este mundo material e contra o judaísmo. Portanto, sua doutrina combina estes dois elementos” (GONZÁLES, 2009, p. 99). Conforme Cairns (2008, p. 84), “Por entender que o judaísmo era mau, odiava a Bíblia Hebraica e o Javé nela apresentado”, chegando a “[...] estabelecer um contraste radical entre o Antigo e o Novo Testamento” (GRANCONATO, 2010, p. 75).
Marcião sustentava uma visão dualista em sua teologia. Para ele, Jeová, o Deus dos hebreus, era “[...] um ser mau e vingativo, desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos, criador da matéria, autor do mal e originador da Lei” (GRANCONATO, 2010, p. 76), tendo outros dois planos abaixo de si, onde encontravam-se os anjos e a matéria. Porém, havia ainda um Deus bom e verdadeiro, o Pai de amor revelado em Jesus, o qual ficava num plano superior ao de Jeová. Para Marcião, conforme registrado por Gonzáles:
Foi Jeová que fez este mundo. O propósito do Pai não era que houvesse um mundo como este, com todas as suas imperfeições, mas que houvesse um mundo puramente espiritual. Mas Jeová, seja por ignorância ou por maldade, fez este mundo, e nele colocou a humanidade (2009, p. 99).
Como seu entendimento, seguindo as concepções gnósticas, era o de que a matéria era má, ele interpretava o papel de Cristo na história da redenção como tendo sido enviado pelo Pai e manifestado como homem “[...] para abolir a Lei e os profetas, bem como todas as obras do perverso criador” (GRANCONATO, 2010, p. 76).
Citando o historiador Roque Frangiotti, Granconato (2010, p. 76) nos informa que no conceito Marcionita, Cristo teria se revestido de uma corporeidade apenas aparente, “[...] pois se assumisse a matéria ficaria sob o poder do criador maligno e não alcançaria seu alvo final que era libertar as almas de todos os homens do plano material”. Com isso, além de pregar “[...] a forma mais crua de universalismo”, pois, no conceito Marcionita, como Matos (apud GRANCONATO, 2010, p. 76) bem esclarece, “O Deus verdadeiro perdoa todos os pecados e assim toda a humanidade será salva”, visto que “A salvação é do espírito, não do corpo”, Marcião ainda declara abertamente seu posicionamento Docetista.
Por seus ensinamentos, ele acabou angariado a antipatia de muitos cristãos, dentre eles, alguns memoráveis, como é o caso do respeitável bispo de Esmirna, do qual se lê que “Marcião [...] certo dia, indo ao encontro de são Policarpo, lhe diz: ‘Reconhece-nos, Policarpo!’ Este respondeu a Marcião: ‘Eu reconheço, reconheço o primogênito de satanás.’ (QUINTA, 2002, p. 156).
Além de Policarpo, “Justino, particularmente, revela especial repugnância pelos ensinos desse herege, alistando-o entre os ‘ateus, ímpios, injustos e iníquos’ com quem os cristãos não tinham nenhuma comunhão”, acreditando ainda que “Marcião propagava suas doutrinas com o auxílio de demônios” (GRANCONATO, 2010, p. 75), conforme escreveu:
Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando seus seguidores a crer num Deus superior ao criador e, com a ajuda dos demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens, proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo, admitindo, em troca, não sabemos que outro deus, ao qual, supondo maior, se atribuem obras maiores do que àquele (JUSTINO apud GRANCONATO, 2010, p. 75).
Para defender sua doutrina, Marcião abandonou toda a revelação Veterotestamentária por consistir, nos moldes de sua compreensão, na palavra de um deus inferior (o Jeová dos judeus), rejeitando ainda aqueles escritos Neotestamentários que discordavam de seus ensinamentos, criando assim seu próprio Cânon, que sustentava como único Evangelho autorizado uma versão do “[...] Evangelho de Lucas (excetuando os capítulos 1 e 2, por serem judaicos demais) e as epístolas de Paulo (menos as epístolas pastorais)” (FISHER In COMFORT, 1998, p.106).
No entendimento marcionita, Paulo era “[...] o único que, entre os apóstolos, havia compreendido a verdadeira mensagem de Jesus”, sendo os demais “[...] judeus demais para entendê-la” (GONZÁLES, 2009, p. 100). Marcião considerava todas as citações do Antigo Testamento encontradas em Lucas e nas cartas paulinas como tendo sido inseridas nos textos sagrados por judaizantes que “[...] tratavam de adulterar a mensagem” (GONZÁLES, 2009, p. 100).
Nas palavras de Gonzáles, outros ensinos negados por Marcião, como pode-se concluir logicamente dos já supracitados, era “[...] a criação, a encarnação e a ressurreição final” (2009, p. 100). Por ter organizado uma igreja independente, “[...] com seus bispos rivais aos da outra igreja”, Gonzáles (2009, p. 100) entende que seus ensinos, portanto, “[...] tendiam a se perpetuarem”.
3 O ATAQUE MARCIONITA E A REAÇÃO DA IGREJA
A teologia de Marcião representou um dos primeiros ataques sérios a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras. Diferentemente dos demais grupos gnósticos, que inventavam “[...] toda uma série de seres espirituais, [...] o que Márciom propôs era muito mais simples” (GONZÁLES, 2009, p. 99), e justamente por suas doutrinas parecerem tão simples e lógicas, “[...] a propaganda marcionita dentro do resto da igreja era impressionante” (GONZÁLES, 2009, p. 100).
É interessante notarmos que a arma utilizada pelos Pais da igreja para reagir à heresia Marcionita fora justamente a reafirmação da Palavra de Deus como única e final autoridade inerrante e infalível.
Nenhuma Escritura é de particular interpretação: A Bíblia “toda” é “todo” o conselho de Deus e podemos chegar ao entendimento de suas partes mais obscuras comparando-as com suas partes mais claras.
Embora não houvesse ainda a preocupação em estabelecer um Cânon como “oficial” para a comunidade, os cristãos do primeiro século faziam uso dos mesmos textos bíblicos que nós hoje (somando a estes os escritos dos Pais apostólicos, que ainda hoje nos servem, embora sem a prerrogativa de inerrância e autoridade), e tinham a firme convicção de que a Verdade é preservada por Deus numa tradição pública e verificável por todos, e esta tradição é resguardada pelos bispos legitimamente instituídos por Deus, tendo sido estes ordenados mediante algum apóstolo ou outros bispos originalmente ordenados por estes mesmos apóstolos.
Quanto ao Antigo Testamento, “[...] todos, exceto os gnósticos e os marcionitas, concordavam que devia fazer parte das Escrituras” (GONZÁLES, 2009, p. 101). Ferreira e Myatt (2007, p. 130) atestam que “os livros do Antigo Testamento protestante já eram aceitos pelos judeus antes do tempo de Jesus”, e acrescentam: “A evidência dos Evangelhos apóia a noção de que o Antigo Testamento usado por Jesus era igual ao que temos hoje”.
No que diz respeito ao Novo Testamento, Ficher (In COMFORT, 1998, p.102) declara que “O princípio que determina o reconhecimento da autoridade dos escritos canônicos do Novo Testamento foi estabelecido dentro do próprio conteúdo desses escritos”. Ele aponta, para comprovação de sua posição, na direção das “[...] repetidas exortações para a leitura pública das mensagens apostólicas” em passagens como 1 Tessalonicenses 5:27 e Colossenses 4:16, por exemplo; e a reinvidicação autoral de comunicadores da Palavra de Deus, que facilmente se pode encontrar em textos como 1 Tessalonicenses 2:13, 1 Coríntios 14:37 e 2 Pedro 3:15-16 (FISHER In COMFORT, 1998, pp.102, 103).
Ferreira e Myatt nos garantem três, dentre alguns dos critérios utilizados no processo gradual de fixação do Cânon, e os dispõem da seguinte maneira: “(1) Apostolicidade. Critério que, em última instância, veio a estabelecer o cânon” (2007, p. 95), e que consistia no fato de que os textos bíblicos, para serem considerados inspirados, deveriam ter sido escritos por um apóstolo ou alguém (companheiro imediato) ligado aos apóstolos.
“(2) Reconhecimento de sua autoridade pela igreja primitiva” (2007, p. 95). Lembrando que a idéia aqui não é a de que uma igreja (concilio) infalível determina o Cânon bíblico, e sim que uma igreja falível, que milita contra o pecado no mundo, é firmada sobre a Palavra de Deus infalível, a qual se apresenta e é reconhecida por esta. Como escreveu Sproul, “[...] a igreja não ‘criou’ o Cânon. A igreja identificou, reconheceu e se submeteu ao Cânon das Escrituras. O termo usado pela igreja em concílio foi recipimus, que significa: ‘nós recebemos’” (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 129).
Bruce (2010, p.36) também asseverou:
Uma coisa precisa ser afirmada com toda ênfase: os livros do Novo Testamento não se tornaram escritos revestidos de autoridade para a Igreja porque foram formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os no cânon porque já os considerava divinamente inspirados, reconhecendo neles o valor inato e, em geral, a autoridade apostólica, direta ou indireta.
Por fim, “(3) A harmonia com os livros dos quais não havia dúvidas” (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 93). Um exemplo deste último é a epístola aos Hebreus, da qual não se sabe a autoria, mas é perfeitamente compatível com a mensagem evangélica (apostólica) do Novo Testamento.
Estes critérios foram de grande valia para os cristãos primitivos, e o reconhecimento oficial dos livros canônicos auxiliou a igreja a lidar com toda sorte de proposições teológicas que surgiram desde então.
CONCLUSÃO
Concluímos, portanto, que, ao sustentar firmemente a autoridade da Palavra de Deus, os cristãos dos primeiros séculos puderam permanecer firmes nos ensinamentos de Cristo e dos apóstolos, e assim manter a igreja longe dos desvios doutrinários ensinados pelo Marcionismo.
Ferreira e Myatt rejeitam como sendo errônea, “[...] A idéia de que o gnosticismo, o marcionismo e o montanismo obrigaram a igreja a fixar o cânon do Novo Testamento” (2007, p. 93). Contudo, podemos afirmar que tais movimentos contribuíram de alguma maneira para a aceleração do processo canônico, e concordar com Ficher (In COMFORT, 1998, p.105) quando diz que “O herético Marcião, com seu ato de definir um cânon limitado para uso próprio (c. 140 d.C.), na realidade instigou os crentes ortodoxos a se manifestarem sobre o assunto”.
Hoje, quando muitos se levantam dentro da própria igreja atacando a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras, como o fazem os adeptos da teologia liberal e neo-ortodoxa, ou selecionam para si uma porção de textos bíblicos que supostamente apóiam suas vãs filosofias e falsos ensinamentos, como no caso dos neopentecostais e carismáticos que constantemente se valem dos mesmos textos fora de contexto para propagarem sua mensagem de prosperidade, a fé na Palavra infalível do nosso Deus deve ser mais uma vez reafirmada para que a luz do Evangelho resplandeça em meio às trevas do evangelicalismo moderno, cada vez mais pragmático, secularizado e, conseqüentemente, apóstata.
É interessante recordar que nunca houve na história da igreja um concílio que tenha se reunido com o objetivo de elaborar uma comissão para investigação da canonicidade dos textos bíblicos, ainda assim, no final do séc. V já não havia qualquer dúvida acerca da inspiração dos 27 livros que compõem o Novo Testamento. Sempre, mesmo que de maneira não oficialmente organizada, existira na igreja cristã um “Padrão” (Cânon)[1] que a guiasse e mantivesse a salvo dos falsos ensinos de satanás e seus mensageiros. Apeguemo-nos, portanto, como fizeram nossos pais espirituais no passado, a este “Padrão” (Cânon) e, frente às mentiras deste mundo corrompido e idólatra, declaremos com Agostinho (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 91): “O que a minha Escritura diz, eu digo”. Ainda se faz pertinente ouvir o velho conselho de Paulo a Timóteo:
“Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido, e que desde a infância sabes as sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento?. São Paulo: Vida Nova, 2010.
CAIRNS, E. E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2008.
COMFORT, P. W (Ed.). A Origem da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.
FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.
GONZÁLES, J. L. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 2009.
GRANCONATO, M. Eles Falaram Sobre o Inferno: a doutrina da perdição eterna nos primeiros escritos cristãos. São Paulo: Arte Editorial, 2010.
HÄGGLUND, B. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 2003.
QUINTA, M. (Org.). Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2002.
[1] A palavra Cânon derivada do hebraico, qenéh, e do grego, kanóni, que podem ser traduzidas por “vara de medir, régua ou padrão.
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