terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um menino do Rio


Do cume da serra desce o rio caudaloso e veloz. Como o carvão alimenta a caldeira, elevando suas chamas em fúria a alturas perigosas, assim também o faz a pesada chuva que, de nuvens escuras e carregadas, despenca em abundância sobre as águas do rio, dando-lhe ímpeto ainda mais feroz. Vem como o cavalo que tem o chicote a estalar em seus lombos...

O menino tem seus olhos no rio. Suas lágrimas escorrem com a chuva e se perdem entre as águas do próprio rio. O mundo inteiro tem seus olhos no Rio e não são poucos os que fazem coro ao pranto do menino.

Ele parece suspenso no ar, como se flutuasse por sobre o rio, mas isto não lhe causa estranheza; de fato, aquelas águas que a poucos dias lhe pareciam tão calmas, nas quais, por vezes sem conta, se divertira entre amigos, passam sob seus pés agora como uma cachoeira imensa; como um caminhão desenfreado arrastando tudo em seu caminho. O menino permanece imóvel, apático! Não se importa nem mesmo que seu corpo esteja coberto de lama. Não sente frio, nem fome, nem dor. Não sabe nem ao menos o motivo das lágrimas, tudo o que sente é uma leve sensação de dormência e grande vazio, como se coisa alguma fizesse sentido ou valesse a pena.

O rio continua a encharcar a terra e a serra vai ganhando nova forma; é como se ela possuísse agora grandes chagas abertas. Névoa, névoa e mais névoa! O ambiente se torna cada vez mais cinzento e, aos olhos do menino, o mundo inteiro parece ser constituído de chuva, lama e névoa! Casas grandes e pequenas, ricas e pobres, belas e nem tanto assim, já não estão mais no lugar onde outrora estiveram. Tudo é ruína e grande parte daquelas construções, bem como o conteúdo que havia dentro delas, seguem no curso do rio, como barquinhos de papel levados pela correnteza.

O menino tenta se mover, mas não pode; é um ponto fixo e paralisado no espaço e no tempo. Tudo é como uma grande tela de cinema que se projeta por todos os lados, envolvendo-o sem, contudo, possibilitar-lhe qualquer alteração no ambiente ao redor. Lá em baixo, em meio a lama, vegetação e entulho, algo chama sua atenção: Há pessoas sendo violentamente atiradas de um lado para o outro, subindo e descendo entre as turvas águas do rio. Ele se sente inquieto, sente-se como se estivesse às portas de deparar-se com algo terrível do qual jamais deveria aproximar-se. Percebe que está suando bastante; as águas da chuva, embora incessantes, parecem não tocar-lhe a face enquanto o suor escorre abundantemente por todo seu corpo. De repente alguém é arremessado para uma das margens. Aqueles olhos – tão vazios, distantes e sem vida – demorou um pouco para perceber de quem eram. Vozes, passos e sons de grande agitação vão aumentando paulatinamente em seus ouvidos. É como se estivesse se afastando de tudo. Tudo escurecendo para clarear-se lentamente de novo e, antes que as coisas desvanecessem de vez, tentou gritar com toda a força que tinha, seus olhos naqueles olhos: “Mamãããe...!!!”

Acabou-se! Estava agora em um dos diversos abrigos improvisados em sua região; parecia um outro mundo. Os olhos não saiam-lhe do pensamento. Sabia que havia chorado mas não se importava (muita coisa já não importava mais...). Perto dali uma menina, numa cena que parecia refletir algo de ironicamente malévolo ou, quem sabe numa outra circunstância, algo que poderia ser caracterizado como uma piada de mal gosto, brincava, inocentemente, de “casinha” no meio de toda aquela gente desesperada.

Todos naquele abrigo sabiam na prática o significado da palavra milagre. Diante de tantas histórias comoventes e lamentáveis, bastava olhar na face do outro o testemunho palpável do milagre, mas frente a tanta dor, por vezes, o milagre passa desapercebido, quase que sem importância. Enquanto enterramos nossos mortos, quantos de nós imaginamos ser a vida um verdadeiro castigo ao invés de uma benção? Quão difícil será para muitos prosseguir numa existência sem esposa (ou marido), filhos, pais, irmãos, amigos... Quão difícil será encontrar uma razão para seguir em frente, quando nenhum daqueles a quem mais amávamos restou; quando nada do que construímos ficou de pé!

O menino sabia quem o salvara: “Deus!” – Responderia a qualquer que o indagasse, mas o “por que?” ou “para quê?” não saberia responder. Quem poderia??? “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (Rom. 11.33). Sabemos que Deus está no controle de tudo, mesmo quando não entendemos Seus motivos. É Ele que “pode salvar e destruir” (Tia. 4.12), “Porque o domínio é do Senhor, e ele reina sobre as nações.” (Sal. 22.28) “Deus reina sobre as nações; Deus está sentado sobre seu santo trono.” (Sal. 47.8) Esta deve ser sempre nossa resposta frente as incertezas dos homens, que freqüentemente nos apresentam o “acaso” como grande legislador do universo, ou questionamentos que diminuam o poder, controle e autoridade do Deus soberano.

Deus tem seu plano e muitas vezes inclui o sofrimento neste. Fora assim no caso do apóstolo Paulo, que após todo seu sofrimento declarou ter aprendido a não confiar nele mesmo e sim “em Deus, que ressuscita os mortos” (2 Cor. 1.9). Fora assim também com Jó que após uma tragédia na qual perdera tudo (inclusive seus filhos e filhas), pôde declarar: “O Senhor deu, e o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1.21). E mesmo com todo seu sofrimento, incitado por sua esposa a blasfemar contra Deus, repreendeu-a: “Como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos de Deus o bem, e não receberemos o mal?” (Jó 2.10). Jó não obteve uma explicação do “por quê?” da tragédia em sua vida, mas depois de todo aquele sofrimento pôde dizer: “Com os ouvidos eu ouvira falar de ti [Deus]; mas agora te vêem os meus olhos” (Jó 42.5).

Somos limitados demais para compreender os propósitos de Deus e quando confrontados com situações como estas, devemos nos apegar e confiar nos bons propósitos de Deus que muitas vezes se escondem além do que nossos olhos podem ver. Deus não tem “prazer na morte de ninguém” (Ez 18.32) nem mesmo na morte do “ímpio” (Ez 18:23; Ez 33:11), portanto, confiemos na sabedoria de Deus em conduzir a história quando algo de ruim acontecer.

Quanto a nós, em nossos limites, estejamos sempre prontos a socorrer nosso próximo, a demonstrar compaixão, a andar nas “boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas.” (Ef. 2.10) Choremos pelos que tiveram suas vidas ceifadas nesta tragédia e busquemos em Deus o consolo, mas ainda há muitos outros meninos como o desta história (sem falar nos jovens e idosos) precisando de nossa mão amiga. Àqueles que sobreviveram, peço que aproveitem esta nova oportunidade para dedicarem suas vidas em louvor ao Criador, para a glória de nosso bom Deus, pois, como nos ensina o breve catecismo de Westminster, este é o fim para o qual fomos criados: “Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”! Esta vida é breve e um dia todos nos encontraremos diante do trono do grande Juiz, o Deus Todo-Podero; há eterna alegria preparada para os que O buscam e depositam nEle sua confiança.

Deus faça resplandecer a Sua glória sobre o Rio!

“Post tenebras lux” (Após as trevas Luz).

Nelson Ávila

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