sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Um Povo em Declínio: A Busca por "Novas Revelações” – Parte I.

Ao longo da história da igreja, não são poucos os que se têm levantado como possuidores de novas “revelações” vindas diretamente da parte de Deus. A igreja Católica Romana, em seu catecismo (Capítulo II, Artigo 1, § 67)1, declara:

No decurso dos séculos houve revelações denominadas ‘privadas’, e algumas delas têm sido reconhecidas pela autoridade da Igreja. Elas não pertencem, contudo, ao depósito da fé. A função delas não é ‘melhorar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a viver dela com mais plenitude em determinada época da história. Guiado pelo Magistério da Igreja, o senso dos fiéis sabe discernir e acolher o que nessas revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou de seus santos à Igreja.”

Entre estas “revelações” estão as “aparições marianas”, das quais se originaram algumas das “crenças” católicas, como a instituição do “Santo Rosário”, onde em 1208, na França, São Domingos de Gusmão declarou ter recebido das mãos de Maria (que a partir de então passou a ser chamada “Nossa Senhora do Rosário”) o tal objeto símbolo desta “revelação”. Há também a instituição do “Escapulário de Nossa Senhora do Carmo”, a qual teria aparecido a São Simão Stock (Inglaterra, 1251) trazendo-o na mão e dizendo: “Hoc tibi et tuis privilegium: in hoc moriens salvabitur”, significando que aquele que participasse da Ordem (dos Carmelitas) e utilizasse o tal símbolo, seria salvo definitivamente. Muitas outras “revelações” são aceitas pelo Romanismo como legítimas, um exemplo, são as de Santa Teresa D’Ávila, onde numa delas declara:

Havia muito tempo que o Senhor me fazia muitas graças já referidas e outras ainda maiores, quando um dia, estando em oração, achei-me subitamente, ao que me parecia, metida corpo e alma no inferno. Entendi que o Senhor queria fazer-me ver o lugar que os demônios aí me haviam preparado, e eu merecera por meus pecados. Durou brevíssimo tempo. Contudo ainda que vivesse muitos anos, acho impossível esquecê-lo (..) A entrada pareceu-me um túnel longo e estreito, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado. O chão tinha aparência de uma água, ou antes, de um lodo sujíssimo e de odor pestilencial, cheio de répteis venenosos. No fundo havia uma concavidade aberta numa parede, como um armário, onde me vi, encerrada de maneira muito apertada.”

Daí prossegue descrevendo as aflições do inferno. Sobre Teresa, que expressava o desejo de casar-se com Jesus, Padre Antônio Vieira disse: "... a união entre Jesus e Teresa foi tão íntima que, passando de união a unidade, Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão um só e o mesmo."

Ainda no século II, por volta de 156-157 (ou 172) d. C., surgiu um movimento conhecido como Montanismo, que se organizou e difundiu em comunidades na Ásia Menor, em Roma e no Norte da África. Montano (fundador do movimento), nascido na Frígia (Ásia Menor Romana, hoje Turquia), afirmava possuir o dom da profecia, e ter sido enviado por Jesus Cristo para inaugurar a era do Paráclito2, o Espírito Santo prometido em João 14.16 e 16.7, que, segundo ele, havia se encarnado em sua própria pessoa, fazendo dele Seu porta-voz. Como Montano e as duas mulheres que o acompanhavam, Priscila e Maximila, pretendiam ser a voz de Cristo e do Espírito Santo, falavam com a “suposta” autoridade deste Espírito e exigiam fé incondicional e obediência absoluta as suas ordens, negando toda autoridade eclesiástica; de fato, Montano, com esta pretensão de que nele falava o Paráclito, afirmava estar acima da própria autoridade das Sagradas Escrituras.

Hipólito escreveu sobre os Montanistas:


“Eles têm sido enganados por duas mulheres, Priscila e Maximila, a quem consideram profetisas, asseverando que o espírito Paracleto penetrou nelas... Exaltam essas mulheres acima dos apóstolos e de todo dom da graça, de modo que alguns deles chegam a dizer que há nelas algo superior a Cristo... Introduziram novidades como jejuns e festas, abstinências e dietas de raízes, transformando essas mulheres em autoridades.”3

Acerca de Montano, Eusébio declarou:

“Montano, dizem, expôs-se inicialmente aos ataques do adversário, por causa do desejo desenfreado de liderança. Ele era um neófito e foi possuído por um espírito; repentinamente, começou a entrar em um tipo de transe extático, a falar palavras ininteligíveis, profetizando de forma contrária ao costume da igreja – a tradição mantida desde os tempos primitivos (...) Alguns dos que ouviram essas afirmações espúrias repreenderam-no como a alguém possuído por um demônio... relembrando a advertência do Senhor de se guardarem, com vigilância, da vinda e do surgimento de falsos profetas; outros, no entanto, foram arrebatados, e não poucos se ensoberbeceram, considerando-se possuídos pelo Espírito Santo e detentores do dom de profecia.”4

As “novas revelações” do Montanismo, tais como “o fim do mundo” (temática principal do movimento, profetizado por Maximila para o período imediatamente posterior à sua morte – 179 d. C.) e a “Nova Jerusalém decida do céu” (referência a Apocalipse 21.1,10) que deveria localizar-se em Pepuza ou Tymion (Frígia), onde os crentes deveriam encontrar-se por ocasião da chegada do Senhor, não se verificaram, todavia, embora a frenética expectativa do fim tenha diminuído entre os montanistas, e o próprio movimento tenha sido rebaixado ao patamar de seita, continuou a expandir-se.

Outro movimento que contou com a influência de supostas “novas revelações”, fora o Anabatísmo Revolucionário. Oriundo do século XVI, diferentemente da primeira geração anabatista (onde muitos dos seus primeiros líderes eram eruditos e quase todos eles pacifistas), esta nova geração foi se fazendo cada vez mais radical, “mesclando-se com o ressentimento popular que havia dado lugar diante da rebelião dos camponeses. Pouco a pouco, o pacifismo original foi esquecido e o movimento tornou-se violento.” 5

“Em Estrasburgom onde o anabatismo era relativamente forte e havia uma certa medida de tolerância” 6, um homem chamado Melchor Hoffman, “correeiro que tinha sido pregador leigo luterano na Dinamarca, mas que, mais tarde, tinha deixado as doutrinas de Lutero a respeito da ceia, transformando-se num seguidor de Zwínglio” 7, abraçou o anabatismo.

“Pouco depois começou a anunciar que o dia do Senhor estava próximo. Sua pregação inflamou as multidões, que correram para Estrasburgo, onde segundo ele seria estabelecida a Nova Jerusalém. O próprio Hoffman predisse que seria encarcerado por seis meses e que então viria o fim. Além disso, abandonou o pacifismo inicial dos anabatistas, declarando que ao aproximar-se o fim seria necessário que os filhos de Deus pegassem em armas contra os filhos das trevas. Quando foi encarcerado e se cumpriu assim a primeira parte de sua profecia, foram muitos os que correram para Estrasburgo na espera do sinal do alto para tomar as armas” 8

Com o aumento constante de anabatistas em Estrasburgo, a cidade teve de tomar medidas cada vez mais repressivas. Enquanto isso Hoffman permanecia encarcerado.

“Então alguém disse que na realidade a Nova Jerusalém seria estabelecida, não em Estrasburgo, mas sim em Münster (...) Para lá foram os visionários e o povo cuja crescente opressão havia levado ao desespero. O reino viria logo. Viria em Münster. E então os pobres receberiam as terras por herança.” 9

Os anabatistas tomaram a cidade e os católicos foram expulsos. “Os protestantes moderados foram também considerados ímpios (...) Diariamente havia aqueles que criam receber visões do alto” 10. Sob a liderança de um padeiro holandês, João Matthys, e seu principal discípulo, João de Leiden (o qual, devido uma vitória militar foi, mais tarde, proclamado “rei da Nova Jerusalém”, e, posteriormente, por ocasião da “guerra constante e o êxodo de muitos varões”, decretou na cidade “a poligamia, usada pelos patriarcas do Antigo Testamento” 11.), os anabatistas foram vitoriosos em algumas batalhas, todavia, acabaram sendo arrasados pelas tropas do bispo de Münster. “Assim terminou o principal broto do anabatismo revolucionário. Melchor Hoffman continuou encarcerado e esquecido, ao que parece, até a sua morte.” 12

Neste mesmo período histórico (século XVI), “apareceram em Wittemberg três leigos procedentes da vizinha Zwickau, que diziam ser profetas. Segundo eles, Deus lhes falava diretamente, e não tinham necessidade das Escrituras” 13. Foi “Devido sua insistência na possessão de dons sobrenaturais”, que segundo Ricardo Cerni, “Se lhes chamou ‘os profetas de Wittenberg’”14, ou Profetas de Zwickau, como mais freqüentemente se pode encontrar nos livros de história. Lutero, que durante seu exílio em Wartburg havia sido cauteloso, aconselhando Melanchthon a tratá-los bem e testar-lhes os espíritos, ao regressar os entrevistou, desdenhou os seus "espíritos", proibiu-lhes a estadia na cidade e ordenou aos seus seguidores que deixassem Zwickau e Erfurt.

Segundo o que tenho relatado até aqui, gostaria de, por hora, apenas alertar aos irmãos em Cristo sobre o perigo de práticas semelhantes que vêm acontecendo em nossos dias. Tais desequilíbrios teológicos não são questões relegadas ao passado; estão bem presentes hoje! O legado místico/espiritualista de movimentos tais como “Romanismo”, “Montanismo” e “Anabatismo Radical” (incluindo os “Profetas de Zwikcau” neste último segmento) continuam, após séculos, a influenciar o evangelicalismo moderno. As bases destes movimentos foram a “experiência” e não a “Palavra de Deus revelada nas Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento”, que segundo o Breve Catecismo de Westminster nos ensina, “é a única regra [que] Deus nos deu para nos dirigir na maneira de o glorificar e gozar”.15 O “Sola Scriptura” (Somente a Escritura) fora o grande princípio sobre o qual os reformadores se apoiaram para refutar as trevas do pensamento medieval e purificar a igreja da heresia. Comentando a este respeito, John Piper escreve:

“Uma das grandes descobertas da Reforma – especialmente de Martinho Lutero – foi que a Palavra de Deus chega até nós na forma de livro. Em outras palavras, Lutero compreendeu este fato poderoso: Deus preserva a experiência da salvação e da santidade de geração para geração por meio de um livro de revelação, não por meio de um bispo em Roma e não pelos êxtases de Thomas Muenzer e os profetas de Zwickau. A Palavra de Deus chega até nós em um livro.”16

O Catolicismo Romano (semelhantemente aos demais grupos e por mais ortodoxos que qualquer daqueles possa parecer em sua doutrina), ao reconhecer como autênticas tais “revelações”, mesmo declarando que não é função destas “‘melhorar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo”, acaba por acrescentar em sua prática o que não é prescrito pelas Sagradas Escrituras (para não dizer contrário a elas), relegando seus fiéis ao mar da ignorância e superstição.

Estas supostas “novas revelações” caminham na contramão da “Revelação Especial de Deus” e quanto mais alguém se aproxima daquelas, mais distante se encontrará da verdade revelada de Deus em Seu Livro.

Aproximemo-nos do Livro de Deus e apeguemo-nos somente a ele, para que Sua luz ilumine nosso entendimento e possa resplandecer em nós, afim de que sejamos fiéis testemunhas daquele que nos “chamou das trevas para Sua maravilhosa luz” (1Pe. 2.9).

Sola Escriptura!

Nelson Ávila

CONTINUA...

___________________________________

1 O Catecismo da Igreja Católica (CIC) pode ser encontrado no endereço eletrônico: http://www.catequista.net/catecismo/conteudo/1a.html .

2 Paráclito (do grego: Parakletos) faz referência ao Espírito Santo. O termo era popularmente utilizado nos tribunais sendo compreendido por “aquele que fica ao lado”. Durante um julgamento, uma pessoa que possuísse fama irrepreensível, considerada totalmente verdadeira e honesta, isenta de qualquer erro, poderia, em silêncio, caminhar até o acusado e “colocar-se ao lado” dele. Isto bastaria, pela presença e fama inviolável da pessoa em questão, para inocentar o réu.

3 Citado em MAcARTHUR, John, O Caos Carismático, São José dos Campos – SP: Editora Fiel, p. 91 (disponível em e-book).

4 Idem, p. 92.

5 GONZALES, Justos L., Uma História Ilustrada do Cristianismo: A Era dos Reformadores – Vol. 6, São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 102.

6 Idem

7 Ibid.

8 Ibid.

9 Ibid., p. 102, 103.

10 Ibid., p. 103.

11 Ibid.

12 Ibid. p. 104.

13 Ibid. p. 76.

14 CERNI, Ricardo, Historia del Protestantismo, Capellades – Barcelona: El Estandarte de la Verdad, 1995, p.47.

15 O Breve Catecismo/ Assembléia de Westminster (1643 a 1652); [tradução Igreja Presbiteriana do Brasil]. – 2. Ed. – São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 8.

16 PIPER, John, O Legado da Alegria Soberana: A graça triunfante de Deus na vida de Agostinho, Lutero e Calvino, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 83.

2 comentários:

  1. É impressionante o fato de pentecostalismo, pelo menos em sua versão inicial, ter tantos pontos de contato com o montanismo. A soberba pretensão à exclusividade da posse do Espírito Santo e, consequente, à superioridade espiritual; o suposto recebimento de novas revelações que se sobrepõe à própria Bíblia; o totalitarismo da liderança (curioso também a participação ativa das mulheres na fundação e chefia dos dois movimentos, em oposição ao claro mandamento bíblico); a escatologia da volta iminente de Jesus e da chegada da nova era do Espírito Santo; as experiências extáticas (inclusive "línguas"); e, na esteira desses movimentos, vários escândalos envolvendo os tais homens e mulheres de Deus que os comandam.
    Certa feita, um dos meus antigos professores de Português contou que, apesar de formado em História, não dava aulas dessa disciplina por estar convencido de que a História não ensina nada para ninguém, já que, segundo ele, a humanidade continua a cometer os mesmos erros do passado. Pelo menos no caso de muitos "cristãos" ele tinha toda a razão.
    Parabéns pelo post, Ir. Nelson!

    Vanderson M. da Silva

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  2. Obrigado pelo comentário irmão Vanderson. O grande elo que une todos estes movimentos (incluindo o pentecostalismo) é o abandono do Sola Scriptura. Sempre que se coloca a experiência, e não a Escritura, como o padrão pelo qual todas as coisas devem ser consideradas, se está trilhando o caminho que afasta da ortodoxia rumo a heresia, pois a Escritura perde sua autoridade e suficiência e, sendo assim, a porta fica aberta para todo tipo de aberração.

    Sola Escriptura!

    Nelson Ávila.

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