terça-feira, 21 de junho de 2011

ASSIM FIZERAM OS REFORMADORES

Um olhar sobre o método hermenêutico utilizado pelos Reformadores

MESQUITA NETO, Nelson Ávila

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a apresentar, sem a pretensão de ser exaustivo, algumas das principais características do método hermenêutico (gramático-histórico) utilizado pelos Reformadores. O intérprete moderno fará bem em observá-los.

Iniciaremos com uma breve nota histórica e biográfica que tem por objetivo delimitar o uso de alguns termos aqui empregados, como “Reforma” e “método gramático-histórico”, bem como descrever sucintamente a vida dos dois homens sobre os quais se fundamenta este trabalho, a saber, Lutero e Calvino. Dentre todos os Reformadores, estes foram escolhidos aqui pela incomparável influência que exerceram, bem como pelo grandioso legado que nos deixaram. Diferentemente de outros Reformadores, muitas das obras de Lutero e Calvino podem ser facilmente acessadas em nossos dias e isto contribui também para a posição destes no presente estudo.

Ao longo do trabalho, tocaremos ainda na questão do caráter divino/humano das Escrituras e as dificuldades que este caráter impõe aos intérpretes que dela se aproximam. Logo após, será apresentada a forma como os Reformadores buscaram ultrapassar tais dificuldades, mostrando algumas das características de sua abordagem, as quais serão esboçadas mais de perto nas seções intituladas “O Livro Humano” e “O Livro Divino”. É nosso intuito que este breve panorama possa auxiliar de algum modo aqueles que objetivam a fidelidade no trato com a Palavra de Deus. Este era o alvo dos Reformadores e podemos dizer que alcançaram êxito na maior parte de seus labores.

2 BREVE NOTA HISTÓRICA E BIOGRÁFICA

De acordo com McGrath, “O termo ‘Reforma’ é usado por historiadores e teólogos para se referir ao movimento da Europa ocidental que teve como expoentes Martinho Lutero, Huldrych Zwingli (Zwinglio) e João Calvino”. Este movimento “[...] promoveu a reforma moral, teológica e institucional da igreja cristã nessa região” e “[...] procurou conduzir a igreja ocidental a fundamentos mais bíblicos para seu sistema de crenças, moralidade e estruturas” (2007, p. 175). Todavia, apesar de isto ser absolutamente verdade, o termo “Reforma” é freqüentemente empregado em vários outros sentidos. “Sua definição pode ser constituída de quatro elementos [...]: luteranismo; a igreja reformada, chamada com freqüência de ‘calvinismo’; a ‘Reforma radical’, conhecida até hoje como ‘anabatismo’; e a ‘contra-Reforma’ ou ‘Reforma católica’” (MCGRATH, 2007, p. 177).

No presente trabalho nos referiremos a “Reforma” nos termos dos dois primeiros elementos, ou seja, o luteranismo e o calvinismo, o que no conceito de McGrath (2007, pp. 177, 178) seria melhor definido como “Reforma magisterial”, em virtude de abarcar a ambos, contudo, nos limitaremos a empregar simplesmente a palavra “Reforma”, não querendo gerar qualquer tipo de má compreensão que possa advir ao incluir-se a palavra magistério.

Na era da Reforma, “[...] considerada, de modo geral, uma das mais criativas da história da teologia cristã” (MCGRATH, 2007, p.182), dos três teólogos mencionados anteriormente, destacam-se especialmente Calvino e Lutero. McGrath (2007, p. 182) escreve que “apesar de Zwinglio ser uma figura central por si mesmo, foi obscurecido pelo talento criativo e o impacto teológico de Lutero e Calvino” e, como citado de antemão, dialogaremos especificamente com o pensamento dos últimos.

No que diz respeito à história da interpretação bíblica, Lopes (2007, p. 167) nos conta que “os princípios interpretativos dos Reformadores”, os quais apresentaremos mais adiante, “[...] serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica que veio a prevalecer na Igreja após a Reforma”. Por “interpretação gramático-histórica”, devemos compreender que “a expressão grammatico se aproximava daquilo que entendemos pelo termo literal, [...] como sendo o significado simples, claro, direto ou habitual” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Não devemos entender a expressão como se referindo apenas à “gramática” que era usada. “Igualmente, o contexto ‘histórico’ em que o texto foi redigido era também muito significativo para essa perspectiva, visto que desejava se aproximar o quanto fosse possível dos tempos e contextos em que o autor original estava falando” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Por alguns mal-entendidos levantados a partir deste termo, Walter Kaiser (KAISER E SILVA, 2009, p. 33) sugeriu a substituição pela expressão “sintático-teológico”, todavia, manteremos aqui a expressão “gramático-histórico”.

Passemos agora um breve olhar sobre a vida dos dois grandes homens em torno dos quais gira nosso trabalho.

2.1 O Reformador Alemão

Justo L. Gonzalez (2009, p. 43) declara que “poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto ou tão calorosamente como Martinho Lutero”. Há quem o considere como “[...] o ‘bicho papão’ que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

Há o outro lado, porém, que o têm como “[...] o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformador de uma igreja corrompida” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

O certo é que, nos últimos tempos, “[...] tanto católicos como protestantes se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polêmica” (GONZALEZ, 2009, p. 43). Gonzáles (2009, p. 43) afirma que “hoje são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostinho foi mais do que justificável e que em muitos pontos tinha razão”.

Paul Althaus (apud GEORGE, 2006, p. 53) chegou mesmo a referir-se a Lutero como um “oceano”, e verdadeiramente há muito conteúdo sobre o qual navegar quando o assunto é o Reformador alemão. Contudo, visto não ser biográfico o objetivo do presente trabalho, resumiremos sua história nas palavras de Timothy George (2006, p. 53):

Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, filho de um minerador de prata de classe média. Destinado para o estudo de Direito, voltou-se para o mosteiro, no qual, após muitas lutas, desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e da igreja. Isso o envolveu num conflito com o papado, seguindo de sua excomunhão e da fundação da Igreja Luterana, a qual presidiu até morrer em 1546.

Não poderíamos concluir esta nota sem antes louvarmos os esforços de Lutero em traduzir a Bíblia para o alemão, afim de que o povo comum de sua terra pudesse ter acesso ao texto sagrado. Nas palavras de Gonzalez (2009, p. 77), “A Bíblia alemã foi uma das obras mais notáveis de Lutero. Mesmo que outros houvessem empreendido o mesmo trabalho, nenhuma tradução chegou a alcançar a estabilidade da de Lutero”.

2.2 O Reformador de Genebra

“Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão surpreendentemente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino” (GEORGE, 2006, p.167). Todavia, apesar das críticas feitas ao Reformador genebrino, críticas estas, em sua grande maioria, frutos de um preconceito ignorante e não de uma reflexão histórico-teológica, o ministério deste homem foi fundamental na causa da Reforma do século XVI. Gonzalez (2009, p. 107) diz que, “sem dúvida, o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino”. Comparando Lutero a Calvino ele acrescenta: “Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente” (GONZALES, 2009, p. 107).

Calvino nasceu em 1509 na cidade de Noyon (França), a nordeste de Paris. “Quando nasceu [...] Lutero já estava dando conferências na Universidade de Erfurt e Zuínglio estava-se ocupando de suas tarefas pastorais em Glarus” (GEORGE, 2006, p. 165). É inegável a influência dos escritos de Lutero sobre o pensamento de Calvino, ele próprio chegou a chamar o Reformador alemão de “pai muito respeitável” (GEORGE, 2006, p. 166). Não obstante, é igualmente inegável o fato de Calvino não poder ser definido de modo simplista como um mero discípulo de Lutero, ou uma extensão apenas daquele. É fato que “Lutero elogiou alguns dos primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido enviados”, e Gonzalez (2009, p. 118) afirma que, além disso, aquele “[...] havia dado boa acolhida às Institutas de Calvino”, a magnum opus do Reformador de Genebra.

Sobre a história de Calvino antes de sua conversão, McGrath (2007, p. 183) nos conta que ele estudou “[...] na Universidade de Paris, um meio acadêmico dominado pelo Escolasticismo, e se mudou depois para a universidade humanista de Orléans, onde estudou direito civil”. McGrath diz ainda que “apesar de se mostrar inicialmente interessado em uma carreira acadêmica, com vinte e poucos anos teve uma experiência de conversão que o levou a se associar cada vez mais aos movimentos de reforma em Paris que, por fim, provocaram o exílio de Calvino na Basiléia” (2007, p. 183).

Após abandonar sua terra natal, Calvino, por influência do Reformador francês Guilherme Farel, o qual veio a se tornar seu grande amigo, permaneceu em Genebra, colaborando para a causa da Reforma naquela cidade. Após uma série de problemas em decorrência da resistência da cidade em aceitar a “[...] base sólida de doutrina e disciplina” (MCGRATH, 2007, p. 184) que Calvino e Farel visavam estabelecer, Calvino foi expulso e viajou para Estrasburgo, onde amadureceu bastante na companhia do Reformador Martin Bucer.

Alguns anos depois, Calvino foi chamado de volta à Genebra, onde permaneceu até sua morte em 1564. Há muito mais a ser dito sobre o grande Reformador genebrino. Poderíamos tratar de sua vasta obra literária; de seus esforços nas áreas da educação (do qual a fundação da Universidade de Genebra é um exemplo), da política, da economia etc.; contudo, por uma questão de espaço e objetivo, gostaríamos de findar esta breve nota biográfica, antes de passarmos a abordar o caráter das Escrituras e as dificuldades que se apresentam aos seus intérpretes, citando as palavras finais de Calvino aos ministros de Genebra, revelando com isto um pouco da imensa humildade daquele grande homem de Deus: “Meus pecados sempre me desgostaram. ... Rogo-vos, que me perdoeis o mal, e se porventura tenha havido algum bem, ... fazei dêle (sic) um exemplo” (CALVINO apud VAN HALSEMA, 1968, p. 203).

3 O CARÁTER DAS ESCRITURAS E AS DIFICULDADES DO INTÉRPRETE

A Bíblia é um Livro Divino, fruto de uma auto-revelação comunicada por Deus através de vários séculos e de diferentes modos, ou como expressa o autor da epístola aos Hebreus: “muitas vezes, e de muitas maneiras” (Heb. 1:1). Ela se apresenta como tendo sido inspirada (qeópneustoV [theopneustos]) pelo próprio Deus (2 Tim. 3:16). Ferreira e Myatt (2007, p. 112) esclarecem que aqui, “Embora a palavra ‘inspirada’ seja a tradução mais comum, a idéia mais correta é que a palavra foi soprada (ou respirada) por Deus”. Tudo isto deve nos fazer conscientes do caráter sobrenatural da Palavra de Deus e de que não a devemos tratar como um livro qualquer. O intérprete, ao aproximar-se da Bíblia imediatamente se deparará com aquilo que Lopes (2007, p. 26) chama de “Distanciamento Natural”, em conseqüência da posição de Deus como o Criador e sustentador de todas as coisas em contraposição ao homem, uma criatura limitada e finita. Haverá ainda o “Distanciamento Espiritual” e “Moral” (LOPES, 2007, p. 27), visto ser Deus absolutamente Espiritual, Perfeito e Santo, enquanto nós possuímos um caráter corrompido e pecaminoso, tendendo sempre ao erro.

Todavia, a Bíblia também é um livro humano. Em seu processo revelacional, aprouve ao Senhor escolher homens por meio dos quais faria conhecida Sua vontade, e como a Confissão de Fé de Westiminster (cap. 1, seção 1) bem expressa: “[...] para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda”. Deus levou em consideração as peculiaridades de cada um destes homens, bem como o contexto no qual encontravam-se inseridos, por isso declaramos possuir a Bíblia um caráter igualmente humano.

Visto que a Bíblia foi escrita a mais de 2000 anos, e ser inconcebível a idéia de que em dois milênios de história a cosmovisão das pessoas tenha permanecido exata e inalteravelmente a mesma, isto nos coloca numa linha do tempo extremamente distanciada do período em que as realidades bíblicas aconteceram.

Augustus N. Lopes (2007, p. 24) assevera que “A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e lingüísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante”; e acrescenta que “Na época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade”. Isto, às vezes, pode nos trazer grande desânimo, já que o entendimento de muitas peculiaridades do Texto Sagrado torna-se um empreendimento a exigir do intérprete esforço descomunal, tais como longos períodos de pesquisa e profunda meditação, sem, contudo, qualquer garantia de que se chegará à compreensão plena das peculiaridades envolvidas. Na verdade, há quem diga ser absolutamente inútil tal esforço, dado sua “impossibilidade”.

De fato, é absolutamente impossível regressar ao período bíblico e apurar em primeira mão os fatos decorrentes daquela época, contudo, é do mesmo modo impossível retornar a qualquer período de qualquer época da história e, ainda assim, tomamos outros relatos como válidos e inquestionáveis para a reconstrução de todos os períodos históricos do qual temos conhecimento. Por conseguinte, mesmo reconhecendo a dificuldade que se nos apresenta, não concordamos com aqueles que contraditoriamente postulam essa completa impossibilidade.

Outra grande dificuldade que se impõe ao intérprete é o chamado “distanciamento lingüístico”. Lopes (2007, p. 25) destaca que “as línguas em que a Bíblia foi escrita já não existem”. Mesmo nos países onde ela foi escrita, o hebraico, o grego e o aramaico já não são mais falados. É importante frisar que “como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades” (LOPES, 2007, p. 25).

O distanciamento autoral também é um problema a ser enfrentado, pois, os autores bíblicos não estão mais vivos, de modo que não os podemos consultar diante de uma dificuldade hermenêutica. Aqueles autores escreveram com uma intenção a ser expressa e, em muitos casos, para responder a questões específicas de suas próprias sociedades, sendo assim, o hermeneuta que se aproxima de seus escritos deve estar consciente deste fato e apto a enfrentá-lo.

Como temos apresentado, nem sempre é tarefa fácil estabelecer o sentido de algumas passagens da Escritura, todavia, aqui podemos observar como os Reformadores lidaram com as mesmas dificuldades que nós em sua própria época, e como fizeram para driblar algumas destas dificuldades.

4 O LIVRO HUMANO: LABUTARE

4.1 Os Reformadores e a necessidade do estudo

A consciência dos Reformadores sobre o aspecto humano das Escrituras, embora permanecessem aferrados na certeza de que em sua maior parte esta era absolutamente clara, em virtude de sua origem divina, os impulsionaram a considerar a necessidade de estudá-las e pesquisá-las com extremo afinco. Calvino expressa o processo hermenêutico em duas palavras: “orare et labutare” (ore e trabalhe). Eles compreenderam que “pelo estudo cuidadoso das línguas originais, pelo conhecimento da cultura e da época em que foram escritas, poder-se-ia chegar ao sentido provável das passagens obscuras” (LOPES, 2007, pp. 162, 163), ou seja, é preciso “labutare”. Por este motivo, buscaram utilizar-se de todos os meios possíveis para se chegar ao real sentido do texto bíblico, fazendo “[...] uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos” (LOPES, 2007, p. 165).

“Melancton, amigo de Lutero e colega dele em Wittenberg, disse que Lutero conhecia a teologia dogmática tão bem no início de seu ministério que era capaz de citar de memória páginas inteiras de Gabriel Biel (texto padrão dogmático, publicado em 1488)” (PIPER, 2005, p. 98). Lopes (In FERREIRA, 2010, p.230) informa que “seu [de Lutero] profundo conhecimento da literatura da época transparece claramente” em seu comentário de Gálatas (1535), onde não apenas cita, mas faz uma avaliação crítica de:

[...] escritores gregos como Virgílio, Esopo, Aristides, Aristóteles, Cícero, Demóstenes, Ovídio, Plínio e Platão, para mencionar uns poucos. [...] demonstra familiaridade também com as obras de Eusébio, Suetônio, Quintiniano, Justino e Porfídio. Conhece também os escritos de alguns dos Pais da Igreja como Ambrósio, Orígines, Cipriano, Irineu e Jerônimo. [...] menciona também as obras de comentaristas medievais como Gregório de Nissa, Pedro Lombardo, Occam, Scotus, Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval. E conhece também até mesmo as obras de Erasmo, a quem critica continuamente.

Semelhantemente nos é informado que Calvino “Dedicou-se ao estudo do latim, do grego, da teologia e dos autores clássicos, além de fazer cursos na área de Direito” (LOPES, 2009, p. 14). Nas palavras do renomado historiador Philip Schaff (apud KAISER E SILVA, 2009, p. 243):

Calvino foi um gênio exegético de primeira ordem. Seus comentários são insuperáveis em termos de originalidade, profundidade, perspicácia, solidez e valor permanente (...) Reuss, o editor chefe das obras [de Calvino], ele próprio um eminente estudioso da Bíblia, afirma que Calvino está “sem sombra de dúvida entre os grandes exegetas do século 16” (...) Diestel, o melhor historiador da exegese do Antigo Testamento, o chama de “criador da autêntica exegese”.

Para os Reformadores, a “graça comum” que fora derramada mesmo sobre descrentes, não poderia ser desprezada, antes, porém, convertida em glória a Deus. Calvino escreveu:

Mas se é a vontade do Senhor que sejamos auxiliados pela física, dialética, matemática e outras disciplinas tais, através do trabalho e do ministério dos descrentes, façamos uso dessa assistência. Pois se negligenciarmos a dádiva das artes, oferecida gratuitamente por Deus, devemos sofrer a justa punição por nossa indolência (CALVINO apud KAISER E SILVA, 2009, p. 245).

4.2 Os Reformadores e a superioridade do texto bíblico

Tais demonstrações de erudição repousavam sobre uma humilde reverência em face do Texto Sagrado. Eles não tinham o objetivo de impor suas próprias conjecturas ao texto, nem de fundamentar suas interpretações sobre a “autoridade” de outros intérpretes e expositores (como o fazia a Igreja Católica Romana, adaptando a mensagem bíblica ao relato dos pais apostólicos, dos dogmas e do papado), mas empenhavam-se por derivar suas conclusões do próprio escrito divino. Calvino, por exemplo, “[...] tinha aversão a quem pregava suas próprias idéias no púlpito” e chegou mesmo a dizer que “quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios sonhos e fantasias” (FERREIRA, 2009, p. 7). Do mesmo modo, Lutero declarou:

O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas idéias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam de seu contexto” (apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223).

Piper (2005, p. 98) nos escreve que “Lutero elevou o texto bíblico muito acima dos ensinamentos dos comentadores ou dos pais da igreja” e acrescenta, “Não foi falta de disposição para estudar os pais e os filósofos que limitaram seu foco; foi uma paixão dominadora pela superioridade do próprio texto bíblico”. Em 1538 Lutero disse que “aquele que for bem familiarizado com o texto da Escritura [...] é um teólogo distinto. Pois uma passagem ou texto bíblico vale mais que comentários de quatro autores” (apud PIPER, 2005, p. 98). Ele, assim como os demais Reformadores, não tinha, com isso, “[...] a intenção de negar a História e seu desenvolvimento” (LOPES, 2007, p. 166), mas, ao postularem o princípio do “sola Scriptura” (somente a Escritura) e o ideal do ad fontes (o retorno às fontes documentais), seu intento era introduzir, no próprio seio da História, “[...] um princípio crítico que permitisse julgá-la, bem como as doutrinas dos Pais” (LOPES, 2007, p. 166).

Lopes (2007, p. 166) nos conta que “para os Reformadores e seus sucessores, os Pais e os escolásticos tinham autoridade na medida em que concordavam com a Escritura”. E aqui cabe ressaltar o método de comparar Escritura com Escritura (derivado dos princípios citados supra) adotado por eles, o qual postula como “[...] a única regra infalível de interpretação das Escrituras [...] a própria Escritura” (LOPES, 2007, p. 163). Lutero expressa este conceito claramente ao afirmar: “Se são obscuras num lugar, são claras em outros” (apud LOPES, 2007, p. 163). Isto contribuiu para determinar o real sentido do texto bíblico a partir de outras partes do mesmo, e não da tradição, de decisões eclesiásticas, de argumentos filosóficos, intuições espirituais ou qualquer outro parâmetro que se possa propor.

É por esta razão que não nos deve causar espanto o fato de encontrarmos em seus escritos comentários aos Pais como estes dois que se seguem:

Os textos dos pais santos devem ser lidos somente por um tempo, para que sejamos por eles guiados às Escrituras Sagradas. Todavia, nós os lemos somente para nos perdermos neles e nunca chegarmos às Escrituras. Somos como homens que estudam os sinais e nunca andam pelo caminho. Os queridos pais desejaram que, por seus escritos, fôssemos guiados às Escrituras apesar de somente a Escritura ser nosso vinhedo, no qual todos nós devemos trabalhar e labutar (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 98, 99).

Devemos ler os Pais cautelosamente, e pesá-los na balança dourada, pois freqüentemente tropeçam e se desviam, e misturam com seus livros muitas coisas dos monges. Agostinho teve mais trabalho para se livrar dos escritos dos Pais do que em combater os heréticos... Quanto mais leio os escritos dos Pais, mais me ofendo, pois apesar da sua reputação e autoridade, diminuíram o valor dos livros e escritos dos santos apóstolos de Cristo (LUTERO apud LOPES, 2007, p. 166).

4.3 Os Reformadores e o método alegórico

Esta atitude também consistia numa reação ao método alegórico de interpretação, característico da escola de Alexandria e popularizado nos escritos de Orígenes (durante o período Patrístico), o qual ganhou força dentro da igreja, chegando inclusive a ser dominante durante toda a Idade Média.

Não é que os Reformadores desconsiderassem a existência de alegorias na Bíblia, todavia, eles as encaravam como uma espécie de quadro ou ilustração firmado solidamente sobre a doutrina, o qual tinha por pano de fundo um sentido literal, e este sentido era o que deveria ser buscado. Desta forma, à semelhança da escola de Antioquia, eles passaram a refutar qualquer tipo de alegorização que não fosse estritamente validada pelo próprio contexto da passagem que estivesse sendo alegorizada, bem como a idéia de que cada passagem da Escritura continha quatro sentidos. O Reformador alemão escreveu: “A Palavra de Deus deve ser interpretada em seu sentido mais claro, conforme as próprias palavras transmitem” (LUTERO, 2009, p.70).

Lutero protesta asperamente a este respeito:

A Alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como uma cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, que (sic) fique parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita... Quando eu era um monge, era muito versado em significados espirituais e alegorias. Mais tarde, porém, quando cheguei ao conhecimento de Cristo através da carta aos Romanos, vi que todas as alegorias são vãs, exceto aquelas que Cristo usou... Jerônimo e Orígines, Deus os perdoe, são os responsáveis pela alegoria ser tão estimada [na Igreja]. Tudo o que Orígines escreveu não vale uma única palavra de Cristo. Quanto a mim, já abandonei estas bobagens, e minha melhor arte é pregar a Escritura em seu sentido único (apud LOPES, 2007, p. 161).

Também Calvino, ao comentar o texto de Efésios 3:18, demonstra desprezo pelas alegorias feitas por Agostinho e Ambrósio:

O que vem a seguir é por si só suficientemente claro, mas que até agora tem sido obscurecido por uma variada gama de interpretações. Agostinho causa muito deleite com sua sutileza, mas que nada tem a ver com o tema. Pois aqui ele busca não sei que mistério na figura da cruz – ele faz a largura ser o amor, a altura ser a esperança, o cumprimento ser a paciência e a profundidade, a humildade. Toda essa sutileza nos agrada, mas o que tem isso a ver com a intenção de Paulo? Por certo que não mais que a opinião de Ambrósio, que denota a forma de uma esfera. Pondo de lado o ponto de vista de outros, afirmarei o que será universalmente reconhecido ser o significado simples e verdadeiro [...] Por essas dimensões, Paulo nada mais tem em mente senão o amor de Cristo do qual fala mais adiante [...] É como se dissesse: “Em toda e qualquer direção em que os homens olhem, nada encontrarão na doutrina da salvação que não esteja relacionado com o amor de Cristo” [...] O significado ficará ainda mais claro se o parafrasearmos assim: “Para que sejais capazes de compreender o amor que é o cumprimento, a largura, a profundidade e a altura, isto é, a plena perfeição de nossa sabedoria.” A metáfora é extraída da matemática, que toma partes como expressão do todo (CALVINO, 2007, pp. 81, 82)

4.4 Os Reformadores e a intenção autoral

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que critica a abordagem alegórica, Calvino, no texto anterior, aponta para outra característica marcante da hermenêutica utilizada na Reforma, a saber, a intenção do autor. Ele se utiliza de expressões como “a intenção de Paulo”, ou ainda, “Paulo [...] tem em mente” etc. como meio para se descobrir o verdadeiro significado do texto bíblico. Também Lutero, em seu segundo comentário à epístola aos Gálatas (1535), “[...] concentra-se insistentemente em determinar a intenção de Paulo em cada passagem” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Ao iniciar sua análise de Gálatas 2, critica Jerônimo afirmando que este “...nem toca no ponto verdadeiro da passagem, pois não leva em conta a intenção ou propósito de Paulo” (LUTERO apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Posteriormente, “[...] comentando Gálatas 1.3, Lutero volta a criticar Jerônimo, afirmando que o mesmo deixou passar inteiramente desapercebido o ponto principal do versículo, por ter falhado em captar a intenção de Paulo ali” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Determinante para esta abordagem e estabelecimento da real intenção pretendida pelo autor inspirado é o “contexto”, tanto imediato quanto geral, da passagem que estiver sendo analisada, assim como o próprio texto em seu formato original, o que nos leva ao tópico seguinte.

4.5 Os Reformadores e as línguas originais

Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, p. 16) escreveu que “a linguagem humana, por sua própria natureza, é grandemente equívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma maneira e se não fosse assim, nunca duvidaríamos do que as pessoas querem dizer quando falam”. Este é justamente um dos maiores problemas com o qual o hermeneuta, em todas as épocas, tem sido obrigado a lidar, em virtude do amplo campo semântico que as palavras assumem, principalmente no caso das Escrituras, visto, como já citado, terem sido escritas em línguas antigas, que sofreram muitas alterações, algumas das quais não se encontrando mais em uso.

Destarte, Piper (2005, p. 101) nos conta que Lutero estava intensamente convencido de que “poder ler grego e hebraico era um dos maiores privilégios e responsabilidades do pregador reformado”. O Reformador de Wittenberg declarou:

Sem as línguas originais não poderíamos ter recebido o Evangelho. As línguas originais são a bainha que contêm a espada do Espírito; elas são a [caixa] que contêm as inestimáveis jóias do pensamento da Antigüidade; elas são a vasilha que guarda o vinho; e como o Evangelho diz, elas são as cestas nas quais os pães e os peixes são guardados para alimentar a multidão (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 102).

O temor de Lutero era o de que, ao se desprezar as línguas originais, o povo se tornasse indefeso diante de toda sorte de heresias, como exemplificado em suas palavras ao referir-se aos Pais apostólicos e aos Valdenses:

Em tempos passados, os pais freqüentemente se enganavam, pois eram ignorantes das línguas. Em nossos dias, há alguns que, como os Valdenses, não acham que as línguas tenham qualquer utilidade; mas, embora sua doutrina seja boa, eles têm freqüentemente errado no verdadeiro sentido do texto sagrado; estão sem armas contra o engano, e tenho grande temor de que sua fé não permaneça pura (LUTERO apud PIPER, 2005, p.102).

Tal declaração concorda com o alerta feito por Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, pp. 51, 52) onde, embora instando para que não se exagere a importância das línguas originais, escreve que “as versões em nossa língua por si mesmas não podem ser a base exclusiva para a formulação da doutrina. Devemos ser cuidadosos em não adotar novas idéias se estas ainda não foram analisadas de acordo com o texto original”.

Lutero atribui a própria vitória da causa Reformada “[...] ao poder penetrante das línguas originais” (PIPER, 2005, p. 103), e testemunha como elas influenciaram sua causa:

Se os originais não tivessem me dado certeza sobre o verdadeiro significado da Palavra, eu teria permanecido um monge acorrentado, ocupado em pregar sossegadamente os erros católicos na obscuridade do mosteiro; o papa, os sofistas e seu império anticristão teriam permanecido inabaláveis (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 103).

Para Lutero:

É um pecado e uma vergonha não conhecer nosso próprio Livro ou não entender as palavras de nosso Deus; é um pecado e uma perda maior ainda que não estudemos as línguas originais, especialmente nestes dias, em que Deus está nos oferecendo e dando homens e livros e toda facilidade e encorajamento para esse estudo. Ele deseja que sua Bíblia seja um livro aberto. Ah, como nossos queridos pais teriam ficado alegres se tivessem tido a oportunidade de estudar as línguas e vir, portanto, preparados às Escrituras Sagradas! Que esforço e labuta eles tiveram para juntar apenas algumas migalhas, enquanto nós, com metade do trabalho – sim, com quase nenhum trabalho – podemos adquirir o pão inteiro! Ah como seus esforços envergonham nossa indolência! (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 104, 105).

Esta ênfase no estudo das línguas originais também se fez presente na hermenêutica de Calvino; são constantes as citações feitas do original em seus comentários. Podemos perceber um pouco do método utilizado pelo Reformador Genebrino ao analisarmos este comentário do texto de Mateus 2.23 (“E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno”):

Mateus não deriva “nazareno” de “Nazaré”, como se existisse uma conexão etimológica real e certa entre as duas palavras. O que temos aqui é uma mera alusão. Nazir [em hebraico] significa santo e devotado a Deus, e por sua vez deriva-se de nazar, que significa separado. É certo que os judeus chamavam uma certa flor (aliás, a insígnia da coroa real) de nazar. Mas não há qualquer dúvida de que aqui Mateus usou a palavra no sentido de santo. Em nenhum lugar lemos que os nazarenos floresceram; mas lemos em Números 6.4 que eles eram separados para Deus conforme prescrito na Lei. Portanto, devemos entender a declaração de Mateus da seguinte forma: apesar de que José foi habitar em um canto da Galiléia [isto é, em Nazaré] por medo, Deus tinha um propósito maior; pois Nazaré havia sido determinada para ser o lar de Cristo, de forma que ele pudesse portar o nome de nazareno, que era apropriadamente seu (CALVINO apud LOPES, 2007, p. 165).

Neste trecho Calvino busca a intenção do evangelista a partir do conhecimento da língua empregada por ele, dos usos gramaticais, das circunstâncias em que escrevera a obra, dentre outras coisas (LOPES, 2007, p. 165), sendo a língua original em grande medida determinante, e isto fica claro ao referir-se às palavras nazir/nazar, dentro de seu contexto no Antigo Testamento, para alcançar o significado de Nazareno no pensamento judaico de Mateus.

Outro exemplo, dentre vários que poderiam ser citados, é o que se encontra no comentário de Colossenses 1:5:

Erasmo o traduz a verdadeira palavra do evangelho. Também estou ciente de que, segundo o idioma hebraico, Paulo faz uso freqüente do genitivo no lugar de um epíteto; mas as palavras de Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho καψ έxοχήν (à guisa de eminência), a palavra da verdade, com vistas a depositar honra nela, para que mais pronta e firmemente à revelação que têm derivado daquela fonte. Assim, introduz-se o termo evangelho à guisa de aposição (CALVINO, 2010, pp. 495, 496).

O que temos apresentado até aqui é parte constituinte do método hermenêutico que ficou conhecido pelo nome de “gramático-histórico”. Este método poderá nos auxiliar de diversas maneiras ao lidarmos com a natureza das Escrituras, todavia, é preciso observar o modo como os Reformadores abordaram o caráter divino/espiritual da mesma, afim de que tenhamos uma visão mais ampla de sua metodologia.

5 O LIVRO DIVINO: ORARE

5.1 Os Reformadores e o distanciamento natural

Como já fizemos menção, a Bíblia é um livro divino e não deve ser lida como se lê um livro qualquer de religião. Ela é inspirada, autoritativa e inerrrante, devendo ser encarada tal qual se apresenta, e esta se apresenta não menos do que como a Palavra de Deus.

Em contraposição, o homem é um ser por natureza imensamente distanciado de Deus. “Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus” (LOPES, 2007, p. 26). Como, então, ultrapassar esta barreira (ou distanciamento) que se nos apresenta?

Lopes (2007, pp. 26, 27) diz que o próprio “[...] fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador, em si só apresenta um distanciamento”. A resposta dos Reformadores diante deste fato encontra-se na iluminação do Espírito Santo.

Os Reformadores enfatizaram bastante a necessidade do papel iluminador do Espírito Santo na tarefa da interpretação das Escrituras. Calvino, que até chegou a receber o título de “o teólogo do Espírito Santo”, escreveu em sua obra célebre:

Elas [as Escrituras], sem dúvida, não são por si só suficientes para que se lhes dê o crédito devido, até que o Pai Celestial, manifestando sua divindade as redima de toda dúvida e então faça com que se lhes dê crédito. Assim pois, a Escritura nos satisfará e servirá de conhecimento para conseguir a salvação, somente quando sua certeza se funde à persuasão do Espírito Santo (CALVINO, 2006, pp. 43,44).

Calvino comentou também:

Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], acreditamos que as Escrituras são de Deus não pelo nosso próprio julgamento [observem isto!] nem pelo julgamento de qualquer outra pessoa; mas, acima de qualquer julgamento humano, afirmamos com absoluta certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus) que esta certeza nos chegou da própria boca de Deus, e não através do ministério de homens (apud PIPER, 2005, p. 133).

Para Calvino (2006, p. 33), “[...] o testemunho que o Espírito Santo dá é muito mais excelente que qualquer outra razão”, e isto não consiste em qualquer tentativa de depreciar o trabalho árduo exercido pelo hermeneuta, mas apenas numa confissão da total dependência do intérprete, frente ao Livro Santo, de algo (ou neste caso Alguém) que seja maior do que ele mesmo, e assim o conduza a verdade que de outro modo não seria capaz de alcançar por seus próprios esforços. As palavras de Calvino aqui parecem simplesmente fazer eco aquela verdade apresentada por Deus ao profeta Isaías: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” (Isa. 55:8-9). Ou aquilo que Paulo expressou tão bem em Romanos 11:33-34: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?”.

5.2 Os Reformadores e os distanciamentos espiritual e moral

Alem da barreira natural, há também a espiritual e a moral. Em virtude do estado deplorável em que se encontra por conseqüência da Queda, o ponto de partida do intérprete deve ser “Transpor o abismo epistemológico” estabelecido por aquela (LOPES, 2007, p. 27). Aqui, mais uma vez os Reformadores enfatizaram a obra do Espírito Santo, o qual opera a regeneração e a conversão na vida do pecador eleito. Tal convicção levou os Reformadores a uma total dependência da liberdade da graça de Deus, e a travar imensa batalha contra o conceito de “livre-arbítrio”.

Em resposta ao livro de Erasmo, “The Freedom of the Will” (A Liberdade da Vontade), Lutero escreveu “The Bondage of the Will” (O Cativeiro da Vontade) e chegou a declarar que “o homem tem em seu poder uma liberdade da vontade para fazer ou não obras externas, reguladas pela lei e pelos castigos (...) Por outro lado, o homem, por si só, não tem a capacidade de purificar seu próprio coração e produzir dons divinos, com o verdadeiro arrependimento de pecados, um verdadeiro (ao contrário do artificial) temor de Deus, verdadeira fé, amor sincero, pureza (...)” (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 113, 114).

Lutero também escreveu, em contraposição a idéia de Erasmo que exaltava “[...] a vontade do homem como sendo livre para superar seus próprios pecados e sua escravidão” (PIPER, 2005, p. 114), que condenava, rejeitava e considerava erro:

[...] todas as doutrinas que exaltam nosso ‘livre arbítrio’, pois são diretamente opostas à mediação e à graça do nosso Senhor Jesus Cristo. Pois já que, aparte de Cristo, o pecado e a morte são nossos mestres e o Diabo é nosso deus e príncipe, não pode haver força ou poder, juízo ou sabedoria, pelo qual possamos nos adaptar e nos moldar para a retidão e a vida. Ao contrário, cegos e cativos, somos obrigados a ser súditos de Satanás e do pecado, fazendo e pensando o que lhe agrada e o que é antagônico a Deus e aos seus mandamentos (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 115).

No centro dessa discussão, além da consciência deste distanciamento natural, espiritual e moral, também estava aquilo que já apresentamos outrora como a busca do sentido claro e literal do texto (que assim o é justamente por sua natureza divina). Por isso, Lutero crítica tanto o conceito quanto a metodologia de Erasmo:

Você [Erasmo] criou uma nova maneira de perder de vista o significado óbvio de um texto. Você insiste que os textos que se manifestam claramente contrários à idéia do “livre-arbítrio” devem ter alguma “explicação” que traga à tona o seu verdadeiro sentido. E nós devemos insistir que tal “explicação” só se torna necessária quando é absurdo manter o sentido literal de alguma passagem bíblica. Em todos os demais casos, devemos manter o sentido simples e natural das palavras, guiados pelas regras de gramática e de hábitos de linguagem que Deus criou entre os homens. Se agirmos de outro modo, nada mais restará sobre o que possamos ter qualquer certeza. Não basta afirmar que uma “explicação” deve ser necessária. Em cada caso, compete-nos indagar se existe a necessidade, ou se deve haver uma “explicação”. Se não puder ser provado que isso se faz necessário, nada se terá conseguido (LUTERO, 2009, p. 69).

Este texto de Lutero parece meio deslocado nesta porção do trabalho em que consideramos a natureza divina das Escrituras, todavia se faz necessário aqui para nos mostrar como nossa teologia pode interferir significativamente no modo como lemos e interpretamos as Escrituras e, por isso, mais uma vez reiteramos a ênfase dos Reformadores na iluminação do Espírito Santo. O remédio oferecido por eles para que ultrapassemos as barreiras (ou distanciamentos) que se levantam diante de nós em virtude do caráter divino das Escrituras, em contraposição a nossa humanidade e conseqüente corrupção que tende sempre ao engano, não é outro senão a “oração”. Devemos constantemente pedir o direcionamento de Deus para a compreensão da Sua Palavra, para que esta corrupção que habita em nós não nos impeça de ouvir Sua doce voz.

Encerramos esta seção com as palavras de Lutero (apud PIPER, 2005, p. 112) que se seguem, desejosos de que Deus desperte o mesmo senso em nossos corações:

Como as Escrituras Sagradas desejam ser tratadas com temor e humildade e ser mais penetradas por meio do estudo [!] com oração piedosa do que com perspicácia do intelecto, é impossível para aqueles que dependem do seu intelecto e que se apressam a adentrar a Escritura com pés sujos, semelhantes a porcos, como se a Escritura fosse meramente uma espécie de sabedoria humana, não fazer mal a si mesmos e a outros a quem instruem.

6 CONCLUSÃO

Concluímos salientando um dos maiores benefícios decorrente do método hermenêutico utilizado pelos Reformadores, a saber, o equilíbrio. Ao encarar a Bíblia em seu caráter divino/humano, os reformadores livraram-se de cair numa série de erros hermenêuticos que podem ser facilmente observados em qualquer livro que trate da história da interpretação bíblica.

Lopes ressalta a importância de mantermos “A divindade e a humanidade das Escrituras [...] em equilíbrio” (2007, p. 26) e nos chama a atenção para o perigo de se enfatizar um aspecto em detrimento do outro. Como exemplo, ele cita o caso dos teólogos (liberais) que enfatizaram o lado humano, influenciados pelo “[...] método histórico-crítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários a sua origem divina” (LOPES, 2007, p. 26). Em conseqüência de tal postura os conceitos de revelação, inspiração, providência de Deus, bem como tudo que envolva um caráter sobrenatural foi absolutamente rejeitado. “Como resultado, a Bíblia passou a ser vista, não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro judaica e depois cristã” (LOPES, 2007, p. 26). Para eles a Bíblia passou a ser encarada como um livro cheio de mitos e erros, composto de colagens de fontes diferentes e muitas vezes contraditórias, feitas por algum tipo de colecionador incompetente, longe do alto conceito sustentado pelos Reformadores.

No outro extremo, negligenciando o caráter humano, Lopes (2007, p.26) aponta para aqueles “movimentos e grupos religiosos” que “esqueceram através da história o fenômeno do distanciamento e encaram a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo”. Tal postura é igualmente perigosa e pode levar o intérprete a desviar-se do real sentido expresso no texto bíblico, levando-o assim a toda gama de subjetivismo, tornando-o sujeito a quaisquer tipos de enganos e heresias que se possa conceber.

O método gramático-histórico nos legou a Reforma e até hoje, quase 500 anos após, continua sendo utilizado por homens fiéis a Deus e a sua Palavra. Para não corrermos o risco de sermos mal-compreendidos, gostaríamos de afirmar que a verdade está na Palavra, não no método. A Bíblia é inerrante, não o método. Contudo, ao longo dos séculos o método utilizado pelos Reformadores tem respeitado o caráter divino/humano das Escrituras e assim, honrado ao Senhor que no-la revelou. Talvez por este motivo é que tenha sido do agrado de Deus despertar a Sua igreja tantas vezes ao longo da história através de homens, que como os Reformadores, empregavam este método no exame da Palavra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, J. Efésios. Fiel: São José dos Campos, SP, 2007.

CALVINO, J. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses. São José dos Campos: Fiel, 2010.

CALVINO, J. Institución de la Religión Cristiana. Capellades, Barcelona: FELiRe, v. I, 2006 (tradução minha).

FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: Uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.

FERREIRA, F. João Calvino e a Pregação das Escrituras. Fé Para Hoje, São José dos Campos: Fiel, n. 35, pp. 3-10, Nov., 2009.

GEORGE, T. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2006.

GONZALEZ, J. L. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2009.

KAISER, W. C.; SILVA, M. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2a Ed., 2009.

LOPES, A. N. A Bíblia e Seus Intérpretes: Uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

LOPES, A. N. Lutero Ainda Fala: um ensaio em história da interpretação bíblica. In FERREIRA, F. (Ed.). A Glória da Graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. Sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José dos Campos: Fiel, 2010.

LOPES, A. N. João Calvino e a Universidade. Fé Para Hoje, São José dos Campos: Fiel, n. 35, pp. 14-18, Nov., 2009.

LUTERO, M. Nascido Escravo. São José dos Campos: Fiel, 2009.

MCGRATH, A. E. Teologia Histórica: uma introdução à história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

PIPER, J. O Legado da Alegria Soberana: A graça triunfante de Deus na vida de Agostinho, Lutero e Calvino. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

VAN HALSEMA, T. B. João Calvino Era Assim. São Paulo: Editôra (sic) Vida Evangélica, 1968.

6 comentários:

  1. Outra grande dificuldade que se impõe ao intérprete é o chamado “distanciamento lingüístico”. “as línguas em que a Bíblia foi escrita já não existem”. Mesmo nos países onde ela foi escrita, o hebraico, o grego e o aramaico já não são mais falados. É importante frisar que “como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades”

    Isso não corresponde à verdade. O hebraico SEMPRE EXISTIU, sobrevivendo à diáspora, e o aramaico se encontra em alguns escritos (não na Torah, os livros do PACTO, de fato) na parte dos escritos judaicos. O grego nunca frequentou o judaísmo, embora não quer dizer que nunca existisse judeus apóstatas e helenizados, portanto, inútil aqui. Os textos HEBRAICOS compreende Bereshit até Malahi. O chamado novo testamento, fica aos cuidados de Roma resolver suas dificuldades textuais; motivos que levam muitas pessoas hoje ao ateísmo/agnosticismo.

    Todos os escritos contidos nos textos judaicos possuem sua exegese via tradição (cuidadosamente guardada, mesmo às custas de sangue inocente), e sem nenhuma dificuldade ao judeu observante. E acrescenta-se bases históricas e fontes EXTERNAS aos mesmos textos, que não criam dificuldades extras.

    A interpretação curiosa e devocional de pessoas ignorantes ao judaísmo, que desconhecem mesmo o nível mais simplório dos textos constitui material risível em algumas denominações mais circenses, criadas pelos reformadores citados. Lutero queria ser santo, mas a fórmula não funcionava. Eis tudo.

    Como diz a profecia, dia viria em que todos iriam se dizer 'judeus', mas só o judaísmo possui a MISHNÁ. E como é TODA conceitual e velada ao curioso, não chegou com uma letra sequer deturpada até os dias de hoje.

    *Não sou ateu, sou ex cristão, e atualmente me dedico ao estudo do monoteísmo da Torah. Não interprete o comentário como ofencivo ou algo do gênero. Apenas me baseio nos fatos.

    Abraços

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  2. Ok, obrigado pela postagem. Quanto as línguas mencionadas, de fato tais quais se encontram nas Escrituras, sejam elas do AT ou NT, não estão em voga hoje. Tanto o Hebraico, como o Aramaico moderno diferem do bíblico em vários pontos. Veja anacronismo e diacronismo também para algumas palavras em termos de semântica. Sobre sua religião, apenas lamento que tenha rejeitado o Messias e agora aguarde um outro Messias que não seja o Cristo Jesus. O NT diz que quando isto acontece é como se estivesse crucificando de novo o Cristo. Sugiro a leitura da Carta aos Hebreus e do Evangelho de João (caso deseje repensar). Quanto a Mishná, esta não constitui para mim Revelação Inspirada, Autoritativa e Inerrante e sim uma tradição dos homens. Jesus citou quase todos os livros Canônicos do AT e o peso da Revelação repousa sobre a palavra Escrita e não sobre uma suposta tradição legada aos "iluminados". Cristo disse que nem um "i" ou "til" passaria. Revelação Escrita, não oral. Que Cristo, por meio do Espírito Santo de Deus, possa trazê-lo para Si, se assim O aprouver.

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  3. Recomendo a leitura do meu texto: "Jesus Nos Tornou Fora da Lei?"

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  4. Nelson dá uma olhadinha no artigo http://somentecristao1.wordpress.com/2011/07/16/a-doutrina-da-reprovacao/#respond

    As anomalias históricas da patrística, a exegese aguáda e a forma leiga a qual ele fala do assunto, é de arrepiar a alma!

    É tão amador que me tirou todo o estímulo de refutá-lo...

    Dá uma olhadinha!
    E.C.S.Junior

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  5. Muito proveitoso e esclarecedor este seu estudo, irmão Nelson. Creio que todo crente, reformado ou não, tem que concordar que o método gramático-histórico é o que de fato presta maior honra à Palavra de Deus, e que todo estudante honesto das Escrituras deve obrigatoriamente adotá-lo. Evidentemente, o avanço do liberalismo e do pentecostalismo nos arraiais evangélicos têm feito com que aquele método venha sendo deixado de lado, o que explica muito da atual crise espiritual.

    Que Deus o abençoe, irmão! Fique no "shalom" de Deus! Abs!

    Vanderson M. da Silva.

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  6. Obrigado irmão Vanderson. É preocupante o fato do método histórico-crítico ter ganhado tanto espaço na igreja e nos seminários contemporâneos. Isso explica um pouco da lamentável situação e consequente irrelevância da igreja no cenário atual. Deus nos ajude a honrar Sua Palavra e buscarmos diligentemente pela verdade revelada.

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