A REFORMA RADICAL[1]
SANTOS JUNIOR, Evandro Carvalho dos (ECS)[2]
RESUMO
Analisa o movimento e
suas nuanças no século XVI. A pesquisa prossegue com um olhar aproximado no que
causou a origem do movimento e seus principais líderes, as diferenças entre os
próprios Anabatistas e o desenvolvimento posterior em Menno Simons. Após isso, a
teologia do grupo será explorada, o que reza com a fé universal das igrejas e que
a torna distinta; e, em seguida, a formação e expansão do movimento serão expostas.
Conclui com uma aplicação prática sobre a importância de alguns pontos
valorizados pelos Anabatistas e desprezados pela igreja contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE
Anabatismo; reforma; batismo; perseguição;
Zwinglio.
INTRODUÇÃO
Devido a importância da
verificação histórica de um determinado movimento na história da igreja como
base para discernir a ortodoxia de tal grupo, torna-se necessário observar mais
de perto o movimento Anabatista. Pois é bem provável que hoje o termo esteja
carregado com conotações caricatas e posições particulares que não permitem um
olhar mais próximo do que realmente aconteceu, por isso propomos uma análise do
movimento, suas nuanças teológicas, diversidade e liderança.
O movimento será
analisado e testado conforme o desenvolvimento histórico-teológico, e isso se
torna relevante a nós hoje, pois as nuanças desse movimento, de certa forma,
trouxeram heranças teológicas ao pensamento doutrinário de diversas
denominações como os batistas, congregacionais, igreja dos irmãos, quakers etc,
mostrando que a sua força de inicio trouxe influências posteriores.
O crescimento do
pentecostalismo em nosso tempo também deve ser algo percebido em sua fonte histórica,
pois a sua influência (ainda que indireta) do Anabatismo é muito forte. Assim,
a ênfase na comunicação imediata com Deus, manifestações físicas e emocionais
em seus cultos revela uma espantosa semelhança com aqueles. Logo, não é errado
concluirmos que a expansão denominação pentecostal do nosso tempo é semelhante
ao crescimento Anabatista no século XVI.
Por essas e outras
razões, é necessário fazermos uma análise sobre o motivo de tão avassalador movimento.
A sequencia deste ensaio se dará primeiro em focar o contexto histórico em que
esses cristãos estavam inseridos e suas discordâncias posteriores; depois nos
aproximaremos da própria origem do movimento e a sua relação com os primeiros
líderes, isso será importante para entendermos que o mesmo não teve necessariamente
uma origem direta com João Batista, como afirmavam no início; após verificarmos
o pano de fundo histórico do movimento, a pesquisa repousará sobre a teologia
do grupo, embora sem muita coesão doutrinária, ainda assim haverá ponto de
acordo bíblico entre os próprios Anabatistas e isso será sondado; logo após, a
expansão do movimento será o objeto de estudo, pois será importante vermos como
o Anabatismo cresceu e tomou proporções além-mar; e, finalmente, as
considerações resultantes da pesquisa acontecerão fulcradas nos dados que obtivemos,
sugerindo como esse movimento pode nos ensinar em nosso contexto hodierno.
1. CONTEXTO HISTÓRICO
O Anabatismo deve ser
considerado mais do que uma denominação, ou vertente teológica, porém um
movimento com raízes que remontam à Reforma Protestante do séc. XVI. Isso é importante asseverar, pois há muita
incompreensão do que foi o movimento Anabatista e quais foram os seus
desenvolvimentos em períodos posteriores à Reforma. Assim, há várias formas de
se falar sobre este grupo: uma delas é através dos relatos dos inimigos do
Anabatismo (alguns reformadores estavam incluídos):
surgiu
recentemente algumas pessoas de mau caráter, que, soberbamente, vangloriando-se
de ensinar em nome do Espírito, depreciam a Escritura e ridicularizam a
simplicidade daqueles que ainda seguem a letra morta e que mata, como eles
mesmos dizem [...] mas eu queria que me dissessem quem é esse espírito, cuja a
inspiração lhes eleva a tão alto lugar, que se atrevem a menosprezar a
Escritura, considerando-a como algo infantil e demasiadamente pueril. (CALVINO,
1597, p. 44)
Assim vemos com
frequência uma característica muito negativa do movimento sempre ligado à
declarações heréticas e entusiásticas; o
próprio Calvino foi um inimigo ferrenho deste grupo. Isso se dava por não ser
um movimento monolítico de pensamento, o Anabatismo, então, se tornou
estigmatizado em muitos aspectos. Porém é necessário ter os olhos voltados um
pouco mais atrás, ao que originou tamanho antagonismo entre os inimigos do
movimento (católicos e protestantes). Isso é necessário, pois, senão, teremos
apenas uma sensação de que tudo se dava no nível da antipatia pessoal e
teológica apenas.
Logo no séc. XVI havia
uma grande turbulência com as ideias de Lutero circulando na Alemanha e
causando impacto em quase todo o continente, assim a fé luterana conquistou muitos
simpatizantes, não somente entre os nobres, como o Príncipe-eleitor da Saxônia,
mas também entre alguns camponeses que se viam presos do sistema
católico-medieval. Eram muitas as queixas, e um homem que demostrava-se grande
opositor daquela política de indulgências e empobrecimento da nação alemã,
certamente teria o apoio dos pobres também.
O que ocorreu foi que a
proposta de Reforma Luterana iniciou-se do “alto”, partindo de um acordo com a
nobreza; permaneciam, ainda, muitas características de um catolicismo não
rompido; as mudanças eram tímidas; e, também, o feudalismo que maltratou tanto
esses camponeses mantinha-se ainda com muita força, mesmo com as ideias de
liberdade cristã de todos os homens expostas por Lutero. Isso causou grande
conflito entre esses alemães e os intelectuais da causa luterana, pois parecia
que aquelas ideias de reforma não eram aplicadas naquele contexto imediato, ou,
se dava muito lentamente.
Por conseguinte desencadeou
o que foi chamado de a Revolta dos Camponeses, quando alguns companheiros da
causa reformada em Wintenberg, Carlstadt e Muntzer, influenciaram esses
cidadãos à medidas mais drásticas para o avanço da reforma naquela cidade.
Enquanto que Muntzer estabelecia força mais frontal à causa luterana, o grupo
foi adquirindo uma identidade mais indesejável aos olhos de Lutero, pois Thomas
Muntzer começou a fazer reuniões nas casas e doutrinava-os segundo a sua
perspectiva política-sociológica-revolucionária, o que foi bem recebido por
todos do grupo ao ponto de serem chamados de Profetas de Zwickau.
Estes ficaram
conhecidos como os Radicais, devido à ênfase de uma reforma mais profunda e
urgente naquele contexto e, especialmente, porque eram dados às visões,
profecias e experiências místicas; o próprio “Muntzer havia dito que não
confiaria em Lutero mesmo que ele tivesse engolido uma dúzia de Bíblias”, isso
gerava antipatia em todo o continente que a reforma alcançava, ao passo que
Lutero sabendo destas coisas respondeu que “não confiaria em Muntzer mesmo que
ele tivesse engolido o Espirito Santo com penas e tudo” (DYCK, 1992, p. 32).
Um passo mais adiante,
observa-se ainda entre os reformadores de primeira geração, como Zwinglio, a
presença destes incômodos revolucionários da causa religiosa e social, ainda
com a mesma ênfase de reformar a própria Reforma. Até então, a controvérsia se
dava no campo do avanço da reforma, agora, a discordância tomou proporções
doutrinárias e se tornou um campo de disputa ideológica sobre os motivos de tal
reforma inacabada: o apego às estruturas e dogmas da Igreja Romana e um agrado parcial
em relação aos nobres era a alegação dos radicais.
Em Zurique os responsáveis pelo inicio deste
movimento foram principalmente os próprios amigos de Zwinglio: Conrado Grebel,
Félix Mantz e Hubmaier. Quanto ao que ocorria em Zurique, os desenvolvimentos
desta nova fé se davam em aspectos mais calmos e diplomáticos do que aqueles
ocorridos em Wintenberg, pelo menos no inicio.
2. O MOVIMENTO ANABATISTA E SEUS
PRINCIPAIS LÍDERES
O movimento Anabatista
recebeu este nome mais especificamente na Suíça, pois a questão do batismo foi
forte entre estes cidadãos. Isso acontecia porque, para este grupo, o batismo infantil era insustentável
biblicamente e funcionava apenas como uma estratégia do governo de Zurique para
alistar os novos cidadãos daquela cidade através de uma cerimônia batismal – o
que mais tarde se mostrou verdadeiro.
Qualquer discordância
que ameaçasse a tranquilidade da reforma naquela cidade deveria ser extirpada. Isso
era uma advertência a este movimento, pois não aceitavam o batismo infantil – pelo
que foram chamados de Anabatistas (rebatizadores). Porém, a situação não
permaneceu apenas na área do pensamento, pelo contrário, medidas mais
energéticas a este movimento foram elaboradas por Zwinglio, por causa de sua perspectiva
da relação entre batismo e ordem social.
Em 1524, Conrad Grebel -
um homem proeminente na reforma da Zurique e amigo muito estimado de Zwinglio -
escreveu três cartas aos líderes da Reforma na Alemanha- Martinho Lutero, André
Carlstadt e Thomas Muntzer (os dois últimos estavam se separando da causa
luterana na Alemanha). Estes escritos eram de caráter informativo, e revelavam à
sua insatisfação com a reforma naquela cidade, apesar de Grebel discordar da política
de reforma de Muntzer; o batismo infantil era o ponto principal.
Destas três cartas foi
preservada apenas uma, e revelava a inconformidade com a doutrina daquela
igreja oficial:
[...]
A escritura nos descreve o batismo deste modo, que ele significa que, pela fé e
pelo sangue de Cristo, os pecados foram lavados para aquele que é batizado, que
muda seu modo de pensar, e crê antes e depois, que ele significa que o homem
está morto e deve estar morto ao pecado e caminha em novidade de vida e de
espirito, e que ele certamente será salvo se, de acordo com este significado,
ele vive sua fé por um batismo interior [...] (Apud DICKY, 1992, p. 42).
Essa afirmação não foi
bem recebida pelo conselho de Zurique, e, em Outubro de 1525, foi decidido que
as “crianças deveriam continuar sendo batizadas e que quaisquer pais que
insistissem na recusa seriam expulsos” daquela cidade, isso era o inicio do
martírio Anabatista e “significava que a força seria usada para perseguir
minorias religiosas nesta área” (DYCK, 1992, p.44).
Zwinglio por sua vez
não ficou fora do conflito, mas “persuadiu o conselho a estabelecer um registro
batismal em cada paróquia” por causa da sua visão sobre a Igreja e o Estado, ele
se manteve ativo neste procedimento; assim, “este recurso, junto com a decisão
de expulsar aqueles cidadãos [...]” foi uma maneira de supervisionar melhor o
que acontecia em Zurique e “permitiu que os magistrados fizessem do batismo
infantil um instrumento para a conformidade política” ( GEORGE, 1994, p. 143). Isso
custou o sangue de muitas famílias, o que legou a este movimento um nome de
“igreja mártir”. Esse preço saiu mais alto do que a consciência daqueles governantes
poderia pagar, e, isso aconteceu não somente em Zurique, mas também na
Alemanha, em cantões católicos da Suíça, Países Baixos etc.
A inimizade entre
católicos e protestantes cessava quando se tinha em conta a perseguição aos
Anabatistas, assim, o primeiro mártir foi Hipólito Eberle (também chamado de
Bolt) em 1525, mas esse foi apenas a primeira gota de sangue de muitos que
seriam massacrados por sua fé. No entanto é importante observar que havia
outras questões que incomodava qualquer reformador ligado ao governo de uma
cidade protestante, a saber: a crença na separação entre igreja e estado, o
pacifismo e a discordância no uso de juramentos; isso era um fardo que os
estadistas católicos ou protestantes não precisariam carregar se usassem a
espada para reprimir tal oposição, e foi o que aconteceu conforme relata
Cornelius J. Dicky:
O
tratamento para com os prisioneiros era extremamente cruel. Eles eram quebrados
num aparelho de tortura conhecido como cavalete de tortura, para fazê-los
revelar o nome de outros, especialmente dos líderes. Para aqueles que
permaneciam firmes, a execução usual era a morte na fogueira. Às vezes,
primeiramente eram estrangulados; às vezes, um pequeno cartucho de pólvora era
amarrado ao redor do pescoço deles como um ato de misericórdia já que o fogo
rápido e a fumaça apressavam o fim. Aos homens que renunciavam à fé anabatista
era dada a misericórdia da morte por decapitação, enquanto as mulheres eram
afogadas. Mas algumas mulheres foram enterradas vivas, e outras ainda como
também homens, foram enforcados. (1992, p.106)
Essas declarações
expressam o terror que se abateu nas comunidades Anabatistas que já se formava
naquela em época em busca de paz. Por conseguinte, a perseguição prosseguia no
objetivo da destruição desta casta religiosa, pois, para os perseguidores, não
havia diferença alguma entre os Anabatistas suíços e os Profetas de Zwickau.
Um pouco depois desta
ordem em Zurique, aparece no cenário do movimento um líder proeminente chamado
Melchior Hoffman. Este homem se converteu ao luteranismo primeiramente, mais
tarde simpatizou com as ideias de Zwinglio e depois pelo radicalismo de
Carlstadt, até se tornar extremamente influenciado pelos Anabatistas em
Estrasbugo e muito influente na expansão de suas ideias (ainda que excêntricas
muitas vezes). Prosseguiu no seu alvo de espalhar pregadores e ministros, e o
fez com muito sucesso ao ponto de deixar, em 1530, uma soma de trezentos
batizados na cidade de Emden e enviar missionários aos Países Baixos.
O sucesso de Hoffman
foi alcançado em boa parte dos Países Baixos e estes estavam sendo influenciados
pela fé do movimento. Todavia como era um homem com ideias estranhas, logo se
percebeu uma obsessão por assuntos de caráter profético, esse seu tempero apocalíptico,
mais tarde trouxe sérios prejuízos à almejada ortodoxia no movimento.
Sobre esses exageros,
Dyck conta-nos que tanto Hoffman quanto os seus discípulos profetizavam que
“Estrasburgo seria a Jerusalém
espiritual e que ele mesmo era o Elias escolhido para proclamar o evento
vindouro ao povo” (1992, p. 92), porém a sua morte aconteceu no seu regresso à
Estrasburgo, no ano de 1533, quando se entregou à prisão, crendo que de
brevemente aconteceria o cumprimento de suas profecias; nada aconteceu e “ele
permaneceu na cadeia até sua morte, cerca de dez anos depois, [...] esperando
até o fim a descida da Nova Jerusalém” (GEORGE, 1994, p.256).
O Anabatistas dos
Países tomaram ênfase nos ensinamentos de Jesus, entre os quais,
principalmente, o pacifismo. O inicio deste novo aspecto na perspectiva do
movimento tornou-se evidente com dois irmãos Obbe e Dirk Philips, a quem o
grupo tem grande débito por suas lideranças e legado.
Obbe e Dirk Philips
foram bem educados, o primeiro foi ordenado ancião e o segundo esteve com os
franciscanos e, possivelmente, recebeu treinamento teológico nesta época. A
vida religiosa no movimento iniciou ainda quando eram discípulos de Jan
Matthijs e foram batizados por volta de 1533-1534; porém os dois irmãos não
concordavam com este homem, nem no suposto estabelecimento do reinado de Jan em
Munster; a poligamia e a teocracia pretendida ali eram ensinos que não lhes
permitia prosseguir com este líder – ainda mais depois da tragédia entre os
munsteritas em 1534-1535.
Esses acontecimentos
acima mencionados e o legalismo que aos poucos engessava o movimento teve
grande impacto em Dirk, que abandonou o movimento em 1539-40, tendo ordenado Obbe
e David Joris antes disso. Todavia a sua herança prosseguiu de maneira tal que
a sua influência foi notória no movimento ao ponto de seu pacifismo se tornar
posteriormente a principal marca do Anabatismo até hoje.
Obbe se tornou
influente nos Países Baixos, e, talvez, se não tivesse surgido no quadro do
movimento Menno Simons, os pacifistas se chamariam hoje de obbenitas. Assim quando observamos a história deste
movimento podemos cair no erro de apenas dar credibilidade documental aos
líderes mais proeminentes, mas existe uma gama de homens que levantaram à
estrutura deste movimento. Por outro lado, devemos rejeitar a perspectiva
Anabatista primitiva que se proclamava como descendentes diretos de João
Batista, dessa forma rejeitavam toda a história e herança deixada pelos pais da
igreja.
A maneira mais refinada
de um Anabatismo ortodoxo surgiu com o grande líder Menno Simons, este ergueu o
movimento do monturo e trouxe-os à pacificidade, catequização, sistematização
de suas doutrinas e evangelização extensiva.
Menno Simons
(1496-1561) nasceu em Witmarsum, Holanda; e foi educado “na escola monástica de
Bolsward” onde teve as primeiras bases para a sua formação como sacerdote
católico, assim teve treinamento em “latim e podia ler um pouco de grego [...]
também teve contato com certos pais da igreja, como Tertuliano, Cipriano e
Eusébio” (GEORGE, 1994, 256).
A liderança de Menno aos
Anabatistas da Holanda foi fundamental, pois a tragédia de Munster somada às
perseguições em Zurique e as heterodoxas afirmações do grupo pelos seus líderes
predecessores trouxeram instabilidade e ameaça à continuidade do movimento. Tudo
isso produziu em Menno Simons grande compaixão, assim para ele aquelas pessoas
eram como ovelhas sem pastor.
Depois de ter
trabalhado bem o assunto da fé Anabatista naquela região, Menno produziu muito
em literatura em vários aspectos, desde literatura devocional até controvérsias
sobre a reforma por meio da espada pregada por radicais como Jan van Leiden;
tudo isso surtiu muito efeito á fé do movimento, pelo que se estendeu em boa
parte dos Países Baixos e conquistou além de muitos adeptos, diversas
antipatias por parte de católicos e protestantes. Logo, não demorou muito para
que Menno fosse perseguido, porém sua morte não se deu por martírio, mas de
maneira natural, em 31 de Janeiro de 1561 em sua casa.
3. A TEOLOGIA ANABATISTA
Quando verificamos o
material de teologia Anabatista, se torna fácil identificarmos o grupo como não
monolítico de pensamento, pois tanto os radicais de Munster quanto os
pacificadores de Menno, são descritos como sem definição exata e sistematizada
de suas doutrinas.
Porém é verdade que a
fé do movimento teve grande desenvolvimento em relação à sua crença inicial, porque os lideres contribuíram,
o movimento foi muito privilegiado. Isso perpassou as perseguições realizadas a
estes de um modo tal que sua teologia foi amadurecendo no calor do martírio,
porém, além dos escritos de seus principais líderes ainda restou a Confissão de
Fé de Schleitheim (1527) composta por sete artigos e bem acessível àqueles
irmãos, pois “à nível de doutrina, a decisão aqui era simples, bíblica,
completa e suficientemente consistente tal que um simples cristão podia
compreendê-la, testemunhar a respeito dela e sofrer por ela” (DYCK, 1992, 54).
A descrição da teologia Anabatista que se segue é compatível com a posição
majoritária do movimento (huteritas, amish e menonitas), embora se reconheça
que há grande diversidade de crenças entre eles.
3.1 Batismo somente de crentes.
O batismo deve ser
realizado somente às pessoas que professam fé em Cristo, ainda que seja uma
confissão acompanhada de pouca eloquência e ainda recente, mesmo assim deve ser
consciente e vinda do próprio crente. O modo de batismo não era tão importante
assim, pois batizavam de “início por afusão ou aspersão e, depois, por imersão”
(CAIRNS, 2008, p.277) porque o que era de crucial importância estava relacionado
ao sujeito do batismo, e se alguém desejasse ser um Anabatista e foi batizado
na infância, então seria [re]batizado.
Esse era um ponto pelo
qual os anabatistas sofriam, morriam e eram exilados, porque a convicção do seu
tempo era que os bebês faziam deviam ser batizados; pelos católicos por que “o
primeiro efeito do batismo é a remissão de pecado” e, esse sacramento da Igreja
Católico era necessário ser aplicado às crianças visto que “no batismo as
crianças recebem a graça espiritual” (HODGE, 2001, pp. 1470,1471). Assim, se
alguma criança fosse vitimada pela mortalidade infantil predominante na idade
média, já teria recebido graça salvadora pelo sacramentum regenerationis.
Entre os protestantes o
ensino de regeneração batismal foi abandonado devido o frágil alicerce bíblico
em que ela se sustentava, e porque isso não coadunava com a ideia de sola gratia afirmada por eles. “O
resultado foi ou abandono da prática, ou a construção de uma nova justificativa
teológica para preservá-la”(FERREIRA; MYATT, 2007, p.940).
Como foi observado
anteriormente, o batismo representava uma filiação não somente à Igreja, mas
também ao Estado; pois defender o contrário disso era sinônimo de anarquia,
pois naquele período de introdução à reforma “[...] os reformadores não
chegaram a aceitar a noção de uma separação completa da Igreja e do Estado”. Assim,
Zwinglio que se mostrou no início simpatizante com as ideias dos Anabatistas,
logo se revelou um oponente forte ao movimento depois de ter analisado as
consequências daquele ensino. Isso levou alguns lideres de cantões protestantes
a pensar que “já que não era mais possível apelar para a doutrina da
regeneração batismal [..]”, algo, porém, precisava ser feito; então, “com o
intuito de apoiar esta prática Zwinglio e Bullinger desenvolveram uma defesa
inédita do batismo infantil”, edificada com bases mais evangélicas “essa defesa
foi construída com a nova teologia da aliança” (2007, p. 940).
No entanto, os Anabatistas não estavam
satisfeitos com a explicação protestante sobre o batismo infantil e pedia que
lhes mostrassem na Bíblia tal batismo, por isso afirmavam aos que batizavam
bebês na época:
“se
eles nos mostrarem de acordo com as Sagradas Escrituras que estamos errados ou
equivocados, nós nos retiraremos e nos retrataremos com gosto, e com gosto
sofreremos condenação e punição por nossa ofensa. Mas, se não se puder ser
provado, espero por Deus que se arrependam e permitam ser instruídos.” (DYCK,
1992, p.55)
Essa afirmação era algo
indigesto àquela época, mas segundo esses cristãos o principio do sola scriptura estava apenas sendo considerado
de maneira consistente. E, se isso deveria ser administrado em todas as
doutrinas bíblicas, então a questão do batismo não poderia ser uma exceção.
3.2 A Igreja e o Estado
O principio de que a Bíblia
deve nortear os assuntos da relação da Igreja com o Estado, também teve um
grande impacto à este povo, pois a Igreja deve ser considerada não como um uma
extensão do Estado ou como uma Instituição de auxilio à este, mas como um entis divino na terra que não deve
receber influência do Estado e nem interferir neste.
A igreja não deve ser
considerada como constituída de uma parte invisível, mas com um só corpo
visível de crentes batizados, e que testemunham de sua fé como peregrinos neste
mundo que exercem a disciplina cristã em amor e nascida no Novo Testamento – não
existente ainda na Antiga Aliança; assim, “por ocasião do dia de Pentecostes, o
Espírito Santo criou um novo povo, a Igreja”(LEDERACH, 1993, p.93).
3.3 A hermenêutica Anabatista e a lei de
Deus
Nos grupos Anabatistas algumas
características da Teologia da Nova Aliança foram encontradas em muitas de suas
afirmações. Essas peculiaridades na Reforma Radical mantinham elementos de uma
“Nova Lei”, que estava em oposição à lei de Moisés, asseverando que o Novo
Testamento possuía autoridade hermenêutica sobre todo o Antigo Testamento.
Algo ainda muito comum
nesse grupo era a sua tipologia bem semelhante ao neo-aliancismo moderno. Como
bem expressou o anabatista Hans Betz martirizado em (1537):
Cristo
nos mostra a lei de Deus para o homem: "Faça aos outros o que gostaria que
fizessem com você. "Ele nos mostra o que é bom e o que é ruim para que
possamos viver de uma maneira diferente. Cristo é o cumprimento da lei que foi
dada em figuras a Moisés. Todos as figuras da
lei finalizam em Cristo, porque Cristo é a lei. [sic] pois obedecer a lei, diz Cristo, é amar a Deus com toda a
força da nossa almas, e amar o nosso próximo como a nós mesmos. Nestes breves
mandamentos a lei é recolhida em Cristo (apud
HOOVER, 2008, p. 107).
Essa era uma declaração
típica de um anabatista do séc. XVI. Os radicais, como eram conhecidos,
enfatizavam a ética do amor, pois a “Fé e amor de um coração puro, diz Paulo, é
a soma de todos os mandamentos [...]” e, “é assim que a lei e os profetas são
cumpridos em Cristo, nosso Senhor. Esta é a maneira que Ele tem nos mostrado
que conduz ao Pai e a vida eterna [...]”(BETZ apud HOOVER, 2008, pp. 107,108).
Essa era uma
perspectiva contrária à posição majoritária daquela época, na qual se afirmava
uma continuidade das alianças, incluindo a Aliança Abraâmica para dentro da
Nova Aliança a fim de batizar os bebês como uma substituição da circuncisão.
3.4 Em memória de mim
A ceia Anabatista é
considerada a forma zwingliana de ordenança dentro Anabatismo. Não houve uma
alteração severa na maneira memorial em que a ceia do Senhor era crida por
Zwinglio conforme pretendido em Lc 22.19
nesse ponto não havia problema com o reformador; porém entre Católicos,
Luteranos e Calvinistas posteriores a questão
era diferente. Esse assunto se tornou um forte motivo de perseguição também,
assim “os mártires anabatistas eram frequentemente interrogados sobre sua
teologia eucarística” (GEORGE, 1994, p. 289).
Embora a ceia do Senhor
fosse memorial, o Anabatistas consideravam como um elo importante de amor e
comunhão ao corpo de Cristo, “assim, os cristãos que partilhavam da ceia juntos
tinham de pôr de lado todas as desavenças e contendas” porque a memória de
Cristo merecia solenidade e “deviam
perdoar uns aos outros, servir uns aos outros, censurar e exortar uns aos
outros[...]” (GEORGE, 1994, p. 291).
Quanto aos que
administrava ceia do Senhor, os irmãos (como também eram conhecidos) não eram
dogmáticos quanto ao dever de ser somente um ministro devidamente ordenado
sempre, mas entendiam que o “que realmente importa não é o que acontece aos
emblemas, e nem quem estava administrando a comunhão”, mas “[...]a qualidade da
vida das pessoas, reunidas em torno do memorial, e seu relacionamento umas com
as outras é o que se revestem da real importância” (LEDERACH, 1993,
p.124).
4. FORMAÇÃO E EXPANSÃO DO MOVIMENTO
Com considerável
observação do movimento na História da Igreja o estudioso deverá estar disposto
a ter diante de si uma perspectiva de desenvolvimento e amadurecimento do
movimento, tanto em suas convicções iniciais quanto a forma que o movimento
assumiu.
Já foi dito anteriormente que os radicais munsteritas
foram o núcleo de formação do movimento, porém deve-se perceber que mais
adiante Menno Simons pastoreou o grupo que assumiu posições mais ortodoxas. Enquanto
observamos o que se passou no Anabatismo alemão, suíço e holandês, pretendemos
abrir a cortina da expansão e êxito missionário do movimento para termos um
quadro mais completo do Anabatismo como um todo.
O conhecido Tratado de
Westfália (1648) entregou algumas cidades à França, menos Mulhasen; porém esta
divisão teve implicações à causa Anabatista, desta forma prosseguiam em suas
reuniões da maneira que desejava. Esse foi um bom tempo ao grupo, agora chamado
de menonitas, pois gozavam de certa liberdade em Alsácia por causa do Tratado,
e começava a receber refugiados, entre eles Jacó Ammann. Este homem se
identificava com o movimento – pois ele mesmo se identificava como um menonita
e foi ordenado ministro posteriormente - porém trouxe aspectos mais ascéticos e
severos ao movimento, como a insistência da prática de lavar os pés, quem em
casos de disciplina “até os membros da família deveriam evitá-los, deixando-os
comer, dormir e viver completamente sozinhos” e, em relação ao modo de vestir,
exigia-se “[...] que os membros usassem roupas simples incluindo barba aos
homens” (DYCK, 1992, p.138).
Os discípulos de Jacó
Ammann ficaram conhecidos como amish,
e mais tarde foram expulsos da Alsácia pelas autoridades francesas em 1712,
porém mesmo permanecendo alguns, ainda foi dada nova ordem de partida em 1744,
1766 e 1780. Após esta retirada, os
amish formaram-se em colônias de “maiores migrações à América [...] até o
século XIX [...], logo que essa mudança aconteceu, a expansão desse tipo de
Anabatismo alcançou o “Canadá, bem como como em Ohio e outros estados
centro-orientais” (DYCK, 1992, p.139).
Os menonitas, por sua
vez, mostravam-se bem lucrativos à qualquer cidade que os recebia, isso se
devia à ênfase no trabalho honesto por parte desses irmãos e as colônias
estabelecidas gozavam de certa liberdade devido este fator. O estudioso menonita
Dyck nos informa que foi dessa maneira que a Rússia logo recebeu os menonitas,
um alvará foi expedido a esses irmãos em “3 de março de 1788 e mais tarde
reafirmado pelo Czar Paulo I, a 8 de setembro de 1800” (1992, p.154) que lhes
conferia permanência e privilégios como qualquer outro imigrante naquele lugar.
Até então os menonitas
russos falavam entre si em idioma alemão, quando “o Departamento Estadual de
Instrução observou de perto as escolas menonitas e nos anos de 1891 toda
instrução seria dada no idioma russo” (DYCK,1992, p.168), o que trouxe declínio
à força da identidade do movimento, um pouco antes disso acontecia o acordo de serviço
militar de 1874, no qual fez com que 18.000 menonitas se mudassem para os
Estados Unidos e Canadá, porém os que permaneceram, sofreram fome em 1921 a
1923 na nova URSS.
A expansão do movimento
se dava rapidamente devido a ênfase missionário, e também a intolerância do
país que lhes recebia. Colônias menonitas foram formadas na Ásia, começando
pela Indonésia, em 1854, e prosseguindo o alcance aos redor até chegar ao
continente africano em 1911 na República do Zaire. A influência menonita também
chegou à América Latina, os primeiros registros são de 1877 na Argentina e, no
Brasil, em 10 de fevereiro de 1930 no estado de Santa Catarina; em solo
brasileiro, as escolas menonitas são supervisionadas pelo estado, porém as
escolas permanecem com excelente qualidade e “muitos não-menonitas estão sendo
ensinados junto com os seus próprios alunos[...]”, assim houve boa
receptividade à esses irmãos, e, com isso, trouxe vários benefícios, pois “um
instituto Bíblico foi estabelecido em Curitiba [...]” e “um orfanato na mesma
cidade, também mantido pelas igrejas Irmãos Menonitas” (DYCK,1992, p.306).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após
a verificação da história, doutrina e práticas do Anabatismo estamos certos de
que a análise deve ter um interesse maior do que a curiosidade acadêmica,
porque a vida deste povo é de grande incentivo à práxis da igreja contemporânea que tem perdido referenciais de fé,
testemunho e piedade. Cremos que a história Anabatista tem muito a nos ensinar.
Outro
fator que merece relevo é que a teologia deste povo não foi realizada dentro de
escritórios, mas em meio a perseguições e açoites. Isso deve fazer-nos pensar
como a teologia está intrinsecamente ligada ao povo comum que sofre e peregrina
neste mundo, como se dele não permanecesse. É verdade que eles cometeram muitos
erros, porém é fato que em muitas coisas foram um povo que pensava além de sua
geração e foram perseguidos por isso.
Assim,
devemos nos abster de qualquer opinião quando nos for passada informações bem
caricatas sobre Anabatistas, pois os mesmos (no início) não formavam um grupo
de pensamento monolítico e boa parte do que temos à nossa disposição hoje vem
dos opositores do movimento. Certamente haverá grande transformação no coração
do pensamento e prática da igreja hodierna quando houver mais dedicação,
simplicidade, testemunho e piedade como estes irmãos tiveram. Que Deus tenha
misericórdia do Seu povo até que esse dia chegue.
REFERÊNCIAS
1.
CALVINO, Juan. Institución de la
Religion Cristiana. Traducida y publicada por Cipriano de Valera em 1597
por Luis de Usoz y Rio en 1858. Nueva edicion revisada em 1967. Países Bajos:
Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. vol I.
2. HOOVER,
Peter; The Secret of the Strength: What Would the Anabaptists Tell This
Generation?. Disponível em:. <http://www.elcristianismoprimitivo.com/pdf/the-secret-of-the-strength-.pdf>.
Acesso em: 07 junho 2012. (Tradução minha)
3.FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma
análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual.
1ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova, 2007.
4. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 3ª
edição revisada e ampliada. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008.
5. HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Hagnos, 2001.
6. GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. 1ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova,
1994.
7. DYCK, Cornelius J. Uma introdução à história menonita. 1ª
edição. Campinas: Editora Cristã Unida – Associação Evangélica Menonita, 1992.
8. LEDERACH, Paul M. Uma terceira opção. 1ª edição.
Campinas: Editora Cristã Unida – Associação Evangélica Menonita, 1993.
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