O Calvinismo, longe de ser um movimento meramente eclesiástico e dogmático, apresenta uma forma peculiar de compreender e estabelecer sua relação com todas as esferas da vida. O que apresentar-se-á doravante é a relação entre Calvinismo e Estado, concebida a partir de uma visão abrangente da soberania de Deus.
Kuyper (2003) declara que este princípio dominante é:
[...] no sentido cosmologicamente mais amplo, a Soberania do Deus Trino sobre todo o cosmos, em todas as esferas e reinos, visíveis e invisíveis [...] uma soberania primordial que se irradia na humanidade numa tríplice supremacia, a saber: 1. A Soberania no Estado; 2. A Soberania na Sociedade; e 3. A Soberania na Igreja (p. 86).
Com relação a “Soberania no Estado”, ao contemplar o homem pós-Queda, em todo o seu estado pecaminoso e imperfeito, o calvinista enxerga na soberania e providência de Deus a necessidade do magistrado e cede em obediência a autoridade deste, pois encarando-o como um “dom” de Deus para a preservação da ordem, entende que honrando-o, o faz ao próprio Deus que o concedeu, visto que toda autoridade só pode governar pela graça de Deus. Conseqüentemente, tal perspectiva “Ergue-nos de uma obediência nascida do medo do exército forte, para uma obediência por causa da consciência” (KUYPER, 2003, p. 97).
O calvinista, ao olhar para além da lei existente e contemplar a Fonte do Direito eterno que repousa em Deus – o doador de toda autoridade –, sente-se encorajado a “[...] protestar incessantemente contra a injustiça da lei em nome deste Direito superior” (Ibidem). Tal confiança do calvinista encontra-se no fato de que acima de qualquer Estado – e toda atrocidade que possa advir deste –, encontra-se o Deus Todo-Poderoso que reina! A Este, sua alma pode sempre recorrer em tempos de opressão e suas orações operam poderosamente para abençoar a nação e, sendo assim, abençoar a si mesmo e seu lar.
Com relação a Soberania de Deus na sociedade, faz-se necessário distinguir entre Sociedade e Estado como esferas independentes, que, em todo o caso, permanecem sob a soberania de Deus.
Kuyper (2003) nos apresenta a Sociedade como sendo de natureza orgânica, pois, ao “[...] originar-se diretamente da criação, possui todos os elementos para seu desenvolvimento na natureza humana como tal” (p. 98). Exemplos disso são as ligações de consangüinidade e outros laços que surgem naturalmente da família; o casamento que se desenvolve da dualidade de homem e mulher; a monogamia que vem da existência original de um homem e uma mulher; as crianças que existem por causa do poder inato de reprodução etc. O Governo, por sua vez, apresenta um caráter mecânico, onde a figura do Estado tem sua razão de existir unicamente devido a corrupção humana que advêm do pecado. Em ambas as esferas, “[...] a autoridade inerente é soberana, isto é, nada tem acima de si exceto Deus” (KUYPER, 2003, p. 101), devendo cada uma exercer esta autoridade em sua própria esfera.
A autoridade orgânica na esfera social pode ser apresentada claramente na distribuição que Deus faz de Sua graça comum. Por exemplo: na esfera social da ciência há homens que influenciaram gerações devido a genialidade que lhes fora concedida por Deus, e isto lhes serviu de autoridade sobre outro. Na esfera da arte, Kuyper nos diz que:
Todo maestro é um rei no Palácio da Arte, não pela lei da herança ou por nomeação, mas somente pela graça de Deus. E esses maestros também impõem autoridade e não estão sujeitos a ninguém, mas governam sobre todos e, no fim, recebem de todos a homenagem em razão de sua superioridade artística (2003, p. 102).
O mesmo pode ser visto na própria esfera da diferenciação das pessoas, onde uma impõe autoridade sobre outra simplesmente devido ao poder soberano da personalidade. Kuyper se refere ainda a uma soberania que é exercida pela própria esfera em si, como no caso da universidade que exerce domínio científico; a academia das belas artes que possui o poder da arte; o grêmio que exerce um domínio técnico etc.; “[...] cada uma destas esferas ou corporações estaria dentro de sua própria esfera de operação” (Ibidem), de forma que:
[...] em muitas direções diferentes vemos que a soberania declara-se em sua própria esfera – 1. Na esfera social, pela superioridade pessoal. 2. Na esfera corporativa das universidades, grêmios, associações etc. 3. Na esfera doméstica da família e da vida de casado. 4. Na autonomia pública (Ibid.).
Para Kuyper (2003), isto não quer dizer que o governo não tenha direito de interferência nessas esferas autônomas. Há para ele aquilo que chama:
[...] tríplice direito e dever: 1. Quando esferas diferentes entram em conflito para forçar respeito mútuo entre as linhas divisórias de cada uma; 2. Defender pessoas individuais e fracas, naquelas esferas, contra o abuso de poder das demais; e 3. Constranger todos a exercer as obrigações pessoais e financeiras para a manutenção da unidade natural do Estado (p. 103, 104).
Isto deve ser feito de maneira que a lei conserve os direitos de cada um, para que o poder exercido pelo governo não se torne em abuso. Cada cidadão deve manter em mente que é tanto um direito quanto um dever lutar pela soberania dentro de sua própria esfera.
Na relação entre Igreja e Estado, o Calvinismo defende a soberania da Igreja em questões religiosas. Apesar de à princípio haver permanecido ainda, por um pouco, preso a antiga relação mantida entre estas duas esferas, o Calvinismo, posteriormente, foi exatamente o braço que ergueu a bandeira da liberdade de consciência, destacando que o dever do Estado não era manter a unidade de uma igreja visível, como Roma sustentou por séculos – permanecendo a Igreja do Estado (sendo o Estado sujeito a esta), assim como fazem (evidentemente que com algumas diferenças) as igrejas luteranas nos países luteranos –, mas “honrar o complexo de igrejas cristãs como a multiforme manifestação da Igreja de Cristo na terra” (KUYPER, 2003, p. 113), e lutar para preservar os direitos individuais de cada igreja, respeitando a soberania da Igreja de Cristo na esfera individual dessas igrejas.
Nelson Ávila
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REFERÊNCIA
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.