segunda-feira, 14 de março de 2011

O MARCIONISMO E A SAGRADA ESCRITURA

Devo este texto às aulas ministradas pelo pr. Franklin Ferreira (entre os dias 14 e 18 de fevereiro de 2011) na Escola Charles Spurgeon, referentes à disciplina “História do Pensamento Cristão”, e sua bondade em analisá-lo antes desta publicação.

Obs: este texto foi revisado e ampliado. Você pode lê-lo aqui: http://emdefesadagraca.blogspot.com/2011/11/o-marcionismo-e-o-canon.html


O nome Marcionismo deriva de seu fundador, Marcião de Sinope (110 – 160 d. C.). Marcião era filho de um bispo, todavia passou a sustentar uma posição teológica bem diferente da ortodoxia cristã, o que o levou a ser excomungado no ano 144 da era cristã.

Marcião pregava o anti-semitismo e uma firme oposição entre Lei e Graça, onde a Lei do A. T. apresentava um Deus mau e irado, enquanto que a Graça do N. T. apresentava o Deus de amor que envia seu Filho para salvar a humanidade. Para defender sua teologia, Marcião abandonou todos os livros Sagrados do A. T. e aqueles do N. T. que discordavam de seus ensinamentos, adotando como único Evangelho autorizado uma versão do Evangelho de Lucas, expurgada de toda passagem que fizesse qualquer referência em benefício ao judaísmo e excluindo os textos que afirmavam a ressurreição corpórea de Cristo, bem como as menções a Sua infância. Semelhantemente, selecionou dez das cartas de Paulo, o apóstolo a quem ele considerava como o mais correto intérprete e transmissor da mensagem evangélica de Jesus, e destas fez um grande recorte, concluindo seu Cânon num total de onze livros.

A teologia de Marcião representou um dos primeiros ataques sérios a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras. É interessante notarmos que a arma utilizada pelos pais da igreja para reagir à heresia marcionista fora justamente a reafirmação da Palavra de Deus como única e final autoridade inerrante e infalível.

Nenhuma Escritura é de particular interpretação: A Bíblia TODA é TODO o conselho de Deus e podemos chegar ao entendimento de suas partes mais obscuras comparando-as com suas partes mais claras. Embora não houvesse ainda um Cânon oficial presente na comunidade, os cristãos do primeiro século faziam uso dos mesmos textos bíblicos que nós hoje (lembrando que o uso dos Apócrifos não foi abolido da igreja cristã, apenas colocado numa posição não autoritativa e não inspirada, servindo, todavia, para a edificação dos irmãos como um bom livro evangélico dos nossos dias também o faz) e tinham a firme convicção de que a Verdade é preservada por Deus numa tradição pública e verificável por todos, e esta tradição é resguardada pelos bispos legitimamente instituídos por Deus, tendo sido estes ordenados por algum apóstolo ou por outros bispos originalmente ordenados pelos apóstolos. Esta convicção foi justamente o que serviu de base para os critérios estabelecidos mais tarde na formulação oficial do Cânon Bíblico, sendo estes (1) a apostolicidade, que consistia no fato de que os textos bíblicos, para serem considerados inspirados, deveriam ter sido escritos por um apóstolo ou alguém (companheiro imediato) ligado aos apóstolos; (2) Reconhecimento de sua autoridade pela igreja primitiva, lembrando que a idéia aqui não é a de que uma igreja (concilio) infalível determina o Cânon bíblico, e sim que uma igreja falível (que milita contra o pecado no mundo) é firmada sobre a Palavra de Deus infalível que se apresenta e é reconhecida por esta. Como escreveu R. C. Sproul: “... a igreja não ‘criou’ o Cânon. A igreja identificou, reconheceu e se submeteu ao Cânon das Escrituras. O termo usado pela igreja em concílio foi recipímus, que significa: ‘nós recebemos’” 1; e (3) A harmonia com os livros dos quais não havia dúvidas. Um exemplo deste último é a epístola aos Hebreus, da qual não se sabe a autoria, mas é perfeitamente compatível com a mensagem evangélica (apostólica) do Novo Testamento.

Hoje, quando muitos se levantam dentro da própria igreja atacando a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras (como é o caso dos liberais e neo-ortodoxos) ou, à semelhança do marcianismo, fazem para si uma seleção de textos bíblicos que supostamente apóiam suas vãs filosofias e falsos ensinamentos (como no caso dos neopentecostais e carismáticos pregadores da prosperidade), a fé na Palavra infalível do nosso Deus deve ser mais uma vez reafirmada para que a luz do Evangelho resplandeça em meio as trevas do evangelicalismo moderno (cada vez mais pragmático, secularizado e, conseqüentemente, apóstata).

É interessante recordar que nunca houve na história da igreja um concílio que tenha se reunido com o objetivo de elaborar uma comissão para investigação da canonicidade dos textos bíblicos, ainda assim, no final do séc. V já não havia qualquer dúvida acerca da inspiração dos 27 livros que compõem o Novo Testamento. Sempre, mesmo que de maneira não oficialmente organizada, existira na igreja cristã um “PADRÃO” (Cânon – palavra derivada do grego (kanón) que pode ser traduzida por “vara de medir, régua ou padrão”) que a guiasse e mantivesse a salvo dos falsos ensinos de Satanás e seus mensageiros. Apeguemo-nos, portanto, como fizeram nossos pais espirituais no passado, a este “PADRÃO” (Cânon) e, frente as mentiras deste mundo corrompido e idólatra, declaremos com Agostinho: “O que a minha Escritura diz, eu digo”2.

“Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido, e que desde a infância sabes as sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra.” (2 Tim 3.14-17)

Sola Scriptura!

Nelson Ávila.

_________________________________

1 SPROUL, R. C., Verdades essenciais da fé cristã; doutrinas bíblicas em linguagem simples e prática, V. 1. São Paulo, Cultura Cristã, 1999. p. 19 – 31. Citado em FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática; uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo, Vida Nova, 2007, p. 129.

2 Confissões, 13:44, Citado em FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática; uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo, Vida Nova, 2007, p. 91.

4 comentários:

  1. Nelson,

    muito boa defesa da Escritura. Concordo com tudo e assino embaixo, exceção ao fato de ser, talvez, o único a discordar da autoria de Hebreus, pois a considero uma carta paulina, assim como boa parte da igreja primitiva considerava [Eusébio de Cesaréia, o primeiro historiador da Igreja confirma essa posição em seu História Eclesiástica]. Mas tudo bem, isso é irrelevante diante da grandiosidade do livro de Hebreus, o qual está em perfeita unidade e harmonia com o restante das Escrituras.

    Há uma idéia "marcionista" de descontinuidade entre o AT e o NT e, infelizmente, mesmo nos arraiais não liberais, neo-ortodoxos e teístas-abertos isso começa a se disseminar.

    Quando não reconhecemos a unidade da Escritura e distinguimos entre o Deus do AT e o Deus do NT, cometemos o mesmo gravíssimo erro de Marcião.

    Portanto, ótimo texto. O qual, se me autorizar, republicarei no "Guerra pela Verdade".

    Grande abraço!

    Cristo o abençoe!

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  2. Quanto a epístola aos Hebreus, não me posiciono pois será sempre atirar no escuro. De fato, há quem afirme que seja de Paulo, eu porém tenho minhas dúvidas... Outros porém, e creio ser a corrente majoritária, acreditam ser de Apolo, como já mencionei: não me posiciono!

    Sobre a questão da publicação, autorizo com prazer!!!

    Nelson Ávila

    Soli Deo Gloria!!

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  3. Além dos grupos que explícita ou implicitamente só aceitam certas porções bíblicas, rejeitando as demais, eu também incluiria certos crentes apegados às tais "caixinhas de promessa", de grande prejuízo para a prática devocional sadia. Como se a Palavra de Deus só consistisse de promessas de bênçãos, sem ameaças, advertências, repreensões, conselhos... Como diz o salmista, "antes de ser afligido andava errado; mas agora tenho guardado a tua palavra... Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos" (Sl 119.67, 71). Claro, há outros grupos mais além desses, e poderíamos lembrar também de pregadores arminianos, que jamais fazem sermões em passagens como 1 Samuel 15.3 ou Sl 139.21,22 -- e, quando precisam mencionar tais passagens, fazem-no como que "mastigando batatinhas", como dizemos aqui, diante do assunto incômodo (do ponto de vista deles, óbvio).

    Deus o abençoe por compartilhar conosco esse texto do Pr. Franklin Ferreira, Ir. Nélson!

    Vanderson M. da Silva

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  4. Olá irmão Vanderson,
    Como sempre, um olhar muito lúcido sobre a realidade e um comentário muito instrutivo. Só esclarecendo uma questão: O texto é meu, só usei por base a Teologia Sistemática e as aulas que o Pr. Franklin ministrou na escola onde estudo.

    Obrigado por comentar.
    Deus o abençoe!

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