terça-feira, 29 de março de 2011

O Calvinismo e a Religião na Perspectiva de Abraham Kuyper

Ao analisar a Religião como tal, Kuyper (2003, p.53) se propõe a responder quatro questões fundamentais mutuamente dependentes: “1. A Religião existe por causa de Deus ou por causa do homem? 2. Ela deve operar diretamente ou mediatamente? 3. Ela pode manter-se parcial em suas operações ou tem de abraçar o todo de nosso ser e existência pessoal? E, 4. Ela pode manter um caráter normal, ou deve revelar um caráter anormal, isto é, um caráter soteriológico?”

À primeira pergunta o Calvinismo responde: “1. A religião do homem não deve ser egoísta e por causa do homem, mas ideal, por causa de Deus.” (KUYPER, 2003, p. 53). Enquanto a filosofia religiosa moderna, imbuída de uma concepção mística da religião, aponta para a idéia de uma evolução religiosa do homem, que nasce do contraste esmagador entre ele mesmo e o cosmos que o cerca, passando para uma concepção posterior de um Espírito Supremo que está em contraste com tudo o que é visível, para no fim desembocar na encantadora altivez de seu próprio espírito humano, que o leva a: “[...] prostrar-se diante de algum ideal impessoal, do qual em auto-adoração supõe ser ele mesmo a venerável encarnação” (KUYPER, 2003, p. 54), permanecendo assim uma religião egoísta, sempre presa a seu caráter subjetivo e sempre uma religião por causa do homem; Segundo Kuyper (2003) expressa: “A posição Calvinista é diametralmente oposta a tudo isto” (p. 55). Embora afirmando que a religião também produz uma benção para o homem, o Calvinismo deixa claro que ela não existe por causa do homem, assim, como o próprio Kuyper (2003, p. 55) escreveu: “Não é Deus quem existe por causa de sua criação; a criação existe por causa de Deus. Pois, como diz a Escritura, ele criou todas as coisas para si mesmo”.

Como resposta a segunda pergunta, Kuyper (2003) declara: “2. Ela não deve operar mediatamente, pela intervenção humana, mas diretamente do coração.” Para Calvino a religião deve ser “[...] ‘nullis mediis interpositis’, isto é, sem a mediação de qualquer criatura, realizar a comunhão direta entre Deus e o coração humano” (KUYPER, 2003, p. 57). Esta é mais uma diferença que se apresenta ao comparar-se a religião por causa do homem e a religião por causa de Deus, pois se:

[...] o principal propósito da religião continua sendo ajudar o homem, e visto ser entendido que o homem é digno da graça por sua devoção, é perfeitamente natural que o homem de piedade inferior deva invocar a mediação do homem mais santo. Outro deve procurar por ele o que ele não pode procurar por si mesmo (KUYPER, p. 58).

Todavia, a religião por causa de Deus exige que cada coração humano deva dar glória a Deus, de sorte que nenhum homem pode comparecer no lugar de outro, tendo cada homem que comparecer pessoalmente por si mesmo. Sendo assim, “[...] a religião atinge seu alvo somente no sacerdócio universal dos crentes” (KUYPER, 2003, p. 58).

Respondendo a terceira pergunta ele diz: “3. Ela não pode permanecer parcial, como correndo ao lado da vida, mas deve exercer controle sobre toda nossa existência” (KUYPER, 2003, p. 53). Para o místico modernista, a religião deve se restringir a um órgão especial, a uma esfera especial e a um grupo especial de pessoas em sua operosidade. Assim, o órgão religioso não deve manifestar-se no todo do ser humano – abrangendo o coração, a força e o entendimento -, mas limitar-se ao campo dos sentimentos ou da vontade. Do mesmo modo, “[...] a esfera da vida religiosa deve assumir o mesmo caráter parcial” (KUYPER, 2003, p. 60), de forma que “A religião fica excluída da ciência, e sua autoridade do campo da vida pública; doravante a câmara interior, a cela de oração e o segredo do coração deveriam ser seus lugares de habitação exclusiva” (KUYPER, 2003, p. 60). Nesta perspectiva, a religião é relegada ao campo subjetivo dos sentimentos. Tendo esta parcialidade em seu orgão e esfera, logicamente a prática da religião confinar-se-á a um círculo de pessoas piedosas, imbuídas de sentimentos místicos e vontade energética.

A partir de uma perspectiva diferente, todavia favorável aos mesmos conceitos parciais, Roma acabou por enclausurar a religião nas masmorras de seus próprios santuários, e tudo que esteja a parte do estritamente consagrado (ou aspergido por sua água benta), torna-se participante do lado profano da vida. Em oposição a tudo isso, Kuyper (2003) alegou:

Todo este conceito sobre o assunto é duramente antagonizado pelo Calvinismo, que vindica para a religião seu caráter universal pleno, e sua completa aplicação universal. Se tudo que é existe por causa de Deus, então segue-se que a criação toda deve dar glória a Deus. O sol, a lua e as estrelas no firmamento, os pássaros do céu, toda a Natureza ao nosso redor, mas, acima de tudo, o próprio homem, que, como sacerdote, deve fazer convergir para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela. E embora o pecado tenha insensibilizado grande parte da criação para a glória de Deus, a exigência, - o ideal, permanece imutável, que cada criatura deve ser submergida no rio da religião, e terminar por colocar-se como uma oferta religiosa sobre o altar do Todo-Poderoso ( p. 62).

Em tudo quanto possa aplicar sua mão ou sua mente, o homem deve estar “[...] constantemente posicionado diante da face de seu Deus, está empregado no serviço de seu Deus, deve obedecer estritamente seu Deus, e acima de tudo, deve objetivar a glória de seu Deus.” (KUYPER, 2003, p. 63). Deus é glorificado pela graça especial que derramou sobre os eleitos, mas da graça comum que fez cair sobre cada objeto de sua criação, esta mesma glória lhe resplandece e lhe é atribuída.

Por fim, como resposta ao último questionamento, Kuyper (2003, p. 53) afirma: “4. Seu caráter deveria ser soteriológico, isto é, deveria nascer, não de nossa natureza caída, mas do novo homem, restaurado pela palingênesis ao seu padrão original.” O homem foi criado com uma religião pura, mas devido a Queda assumiu um estado anormal e imperfeito de religiosidade e, por isso, o Calvinista encara a religião a partir de um caráter soteriológico, entendendo a necessidade de “Regeneração, para uma verdadeira existência; e secundariamente, a necessidade de Revelação, para clara consciência.” (KUYPER, 2003, p. 65). Somente por meio deste caráter soteriológico, a religião retoma seu padrão original, que está muito além do padrão estabelecido pelas demais cosmovisões. Como expressou o dr. Kuyper (2003):

Em cada um dos quatro grandes problemas da religião, o Calvinismo tem expresso sua convicção em um dogma apropriado e cada vez tem feito aquela escolha que mesmo agora [...] satisfaz a procura mais ideal e deixa o caminho aberto para um desenvolvimento sempre mais rico” (p. 68).

______________________________________

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.

2 comentários:

  1. Quem dera as nações "cristãs" do Ocidente redescobrissem esse tipo cristianismo (se é que algum dia, de fato, experimentaram tal realidade, o que é questionável). Vejo a Europa pós-moderna e pós-cristã rejeitar abertamente sua herança cristã, ao mesmo tempo em que o Islã ganha cada vez mais terreno ali, principalmente pelas levas crescentes de imigrantes que para lá vão. Não temos como saber, mas talvez seja castigo de Deus: já que o Velho Mundo rejeita o jugo de Cristo, ele conhecerá o jugo do maometismo. Mas aí já será tarde demais. Tomara que não, mas há sinalizações nesse sentido, infelizmente.

    Em minhas orações sempre peço a Deus uma Reforma no cristianismo pátrio. Para tal, creio que o resgate do legado de Abraham Kuyper muito nos ajudaria, e esses textos que o irmão vem publicando são muito oportunos. Deus o abençoe, irmão! Abs!

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelo comentário Irmão Vanderson, seus comentários sempre acrescentam algo para uma melhor compreensão do texto.
    De fato, creio que o cristianismo tem perdido espaço por entregar todas as esferas da vida que não se restringem a Religião na mão dos ímpios. Um exemplo disso é a política e a ciência. Este dualismo entre de Deus (igreja) do diabo (o mundo e a própria criação) é um dualismo muito mais católico e gnóstico do que protestante. Kuyper vai defender uma visão abrangente do cosmos a partir da doutrina da graça comum e mostrar que o calvinismo influencia o mundo por encará-lo como criação de Deus, de modo que ao analisá-lo descobre-se sempre algo sobre o Criador.

    Deus o abençoe!

    Nelson Ávila.

    ResponderExcluir

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...