segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Justificação é somente pela Graça


Por João Calvino (1509-1564)

Nós que somos Judeus por natureza, e não pecadores dentre os Gentios, sabendo que um homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo, e não por obras da Lei, pois por obras da carne nenhuma obra será justificada.

Gal. 2: 15-16

Até agora, temos exposto o porquê de Paulo, abordando o tema das cerimônias, tipos e sombras, os quais eram praticados antes da vinda do Senhor Jesus Cristo, chegar a conclusão geral de que um homem não pode ser justificado ou aceito as vistas de Deus a menos que ele observe toda a Lei. Agora, num primeiro momento, nós podemos considerar que essas coisas são duas questões distintas; todavia, como temos vindo a dizer, Paulo tem que nos atrair de volta ao básico a fim de expor a tolice de acreditar que podemos obter favor aos olhos de Deus através de nossos próprios méritos. Agora, nós já temos discutido a razão porque Paulo acrescenta a palavra “lei”. Por mais que seja comumente aceito que um bom homem possa obter favor e aceitação diante de Deus, os homens estão muito seriamente enganados a respeito desta matéria. Na verdade, o que quer que possamos ter feito, não poderá conquistar o favor de Deus, porque ele merece o melhor de tudo o que esteja em nosso poder. Portanto, não há nenhum mérito possível de nossa parte (se é que possamos chamá-lo assim), a menos que cumpramos os temos do pacto que ele fez conosco, quando ele disse que aquele que guarda a lei obterá vida e salvação (Lev 18:5). Quando Deus pronunciou estas palavras, ele estava preparado para aceitar nossa total obediência como digna de salvação, mas isso não implica, de fato, que possamos, por tanto, merecer o favor, pois nenhum de nós tem cumprido com nosso dever (como veremos a seguir). Assim, a promessa teria sido perdida, ou no mínimo sem efeito, em razão de que jamais seria aplicada a qualquer pessoa, não tivesse Deus enviado o remédio – ou seja, a menos que, apesar da nossa injustiça, ele nos perdoasse os pecados e nos aceitasse como justos. Quando Paulo diz que não podemos ser justificados pelas obras da lei, ele quer dizer que se reivindicarmos merecer graça e salvação por Deus ter prometido que aqueles que observassem a lei seriam contados como justos, estaríamos completamente enganados, pois ninguém guarda a lei perfeitamente. Devemos entender que todos nós somos tidos como culpados diante de Deus e temos a sentença de condenação pairando sobre nossas cabeças.

Para expressar esse fato com mais clareza, Paulo faz uma comparação entre os Judeus e os Gentios. Ele diz que apesar de serem “Judeus por natureza e não pecadores dentre os Gentios”, perceberam que só poderiam ser aceitos por Deus pela fé no Senhor Jesus Cristo. Pois, embora todos os homens tenham caído em Adão e, portanto, não haja nenhum mérito individual, parecia que os Judeus tinham um privilégio especial, na medida em que Deus os havia adotado como seus próprios filhos e os chamado servos seus. No entanto, este é o ponto onde os Judeus estavam errados. Pois, quando as Escrituras falam da “incircuncisão”, referem-se a poluição que habita em nós por meio de Adão, e nos coloca a todos debaixo da condenação desde o ventre de nossas mães. Mas os Judeus acreditavam que Deus os havia libertado desta maldição sobre a humanidade e, portanto, vangloriavam-se. Embora seja verdade que grande honra lhes fora conferida, a qual deveriam ter valorizado acima de todo bem terrestre – por Deus tê-los escolhido para serem o seu povo e a sua herança – ainda assim, eles tinham a obrigação de reconhecer humildemente que em si mesmos não eram dignos. Na verdade, nós também temos adotado tal atitude presunçosa quando experimentamos a graça de Deus; do mesmo modo que os Judeus, em sua maioria, erroneamente acreditavam ser superiores a todos os demais. Eles achavam que Deus havia encontrado algo sobre eles que O havia levado a preferí-los ao invés daqueles que Ele havia rejeitado. Essa arrogância trouxe consigo uma ingratidão pecaminosa, por não atribuírem a Deus todas as boas coisas que haviam recebido de Suas mãos, encheram-se de soberba, como se Deus os achasse melhores ou mais dignos da salvação eterna do que os Gentios.

Para extinguir toda esta presunção, Paulo inicia seu argumento assim: “Nós que somos Judeus por natureza...” Parece que ele está dizendo: “Sim, é verdade que a nós tem sido mostrada maior graça que aos Gentios, a quem Deus não aceitou em Sua igreja”. Mas quando ele fala assim, não pretende, de fato, dar aos Judeus ocasião para orgulho; pelo contrário, ele está espalhando diante deles as coisas que eles tem recebido gratuitamente de Deus para ensinar-lhes que não possuem motivos para se gabar. Na Epístola aos Romanos, Paulo faz duas afirmações que à primeira vista parecem contraditórias, mas que estão em perfeita harmonia. Por um lado, ele pergunta: “Não temos nós mais privilégios que os Gentios? E ele responde: “Sim, pois fomos escolhidos para ser o Seu povo; ele nos deu a circuncisão como um sinal e selo de que nós somos Seus filhos; ele fez um pacto conosco; ele prometeu nos enviar o Redentor do mundo. Assim, se considerarmos as misericórdias que Deus tem derramado sobre nós, certamente que temos sido abençoados e exaltados acima de todos os outros povos”. Aqui, Paulo magnifica a bondade de Deus para com eles (Rom 3:1-2). No entanto, mais tarde ele faz a mesma pergunta (Que vantagens possuem os Judeus?), porém, responde: “Nenhuma” (Rom 3:9-10). “Pois todos nós estamos debaixo da maldição de Deus. Se os Gentios estão para ser condenados, então nós estamos para ser condenados duas vezes mais, pois eles têm a desculpa da ignorância. Todavia, eles não podem escapar de Deus, mas perecerão apesar de jamais terem recebido qualquer instrução ou conhecimento de doutrina. Segue-se, então, que seremos condenados pela lei, porque Deus nos tem ensinado e ainda assim não paramos de pecar e transgredir suas justas leis, de modo que agora estamos mergulhados em grande e profunda condenação tanto quanto os Gentios e descrentes”, ele diz. Assim, os Judeus eram distintos dos Gentios – não por que fossem mais dignos ou mais justos, mas simplesmente por Deus os ter escolhido por Sua livre generosidade.

Da mesma forma, os filhos dos crentes não são melhores que os filhos dos Gentios, ou mesmo dos Turcos, quando se trata de sua natureza. Pois somos todos parte de uma massa corrupta e maldita a qual Deus tem condenado, de modo que nenhum de nós pode exaltar-se ou pensar possuir maior valor que nossos amigos. No entanto, Paulo declara que nossos filhos são santificados; que não estão manchados, assim como estão aqueles que nasceram de descrentes ou pagãos (1 Cor 7:14). Isto faria parecer que há alguma contradição aqui. Entretanto, tudo se encaixa muito bem, porque, por nossa natureza, todos estamos manchados e corrompidos, com uma única exceção [Cristo]. Todavia, há uma espécie de dom sobrenatural, isto é, um privilégio que Deus confere a fim de que os filhos dos crentes sejam dedicados a Ele, e os reconhece e aceita como Seus. É por isso que as crianças da igreja hoje são consideradas como povo de Deus e contadas entre o número dos eleitos, assim como sob a lei os Judeus foram separados do resto do mundo. Isto explica porque Paulo disse: “Nós somos judeus e não pecadores dentre os Gentios”. Por “pecadores”, ele queria dizer: aqueles que continuavam em suas imundícies, não tendo sido lavados pela graça de Deus. Na realidade, a circuncisão era, em si mesma, um sinal e testemunho do fato de Deus ter aceitado a familia de Abraão e a raça que descende dele, como sua própria família e povo especial. Nos velhos tempos, isto era o que distinguia os Judeus dos incrédulos, pois, embora fossem igualmente (equal status) filhos de Adão, Deus escolheu alguns e deixou outros de lado, como estranhos a Sua família. Se perguntamos o porque de isto ser assim, a resposta só pode ser puramente por causa da graça de Deus, desde que os Judeus em si mesmos não eram de alguma forma proeminentes.

Sigamos agora o argumento que Paulo está construindo aqui. Ele diz: “Sabendo que um homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo”. Ao dizer isso, Paulo demonstra que o quer que seja a graça, tinha que ser recebida de Deus; eles não tinham liberdade para confiar no homem ou em si mesmos como se merecessem isto de Deus. Não, pelo contrário, eles tinham que buscar refúgio na Sua livre generosidade, reconhecendo que a salvação está somente em Jesus Cristo, que veio para resgatar da perdição aqueles que já estavam perdidos. Isto é confirmado em outra passagem, onde diz que Ele “veio e pregou paz a vós que estáveis longe e aos que estavam perto” (Ef 2:17). Jesus Cristo é a paz, pois é através dele que Deus pode nos amar e receber em misericórdia. Isto não é verdade apenas para aqueles que estavam distantes, como os Gentios, mas também para os filhos de Abraão, apesar da dignidade e nobreza que já possuíam (por isso não ser deles por natureza). Paulo diz que os Judeus que haviam se convertido ao Cristianismo sabiam que não poderiam ser justificados pelas obras da lei, mas somente pela fé no Senhor Jesus Cristo, e faz uma comparação entre os dois com o objetivo de mostrar que não podemos ser justificados pela graça, a menos que renunciemos realmente todo mérito pessoal.

Isto é bem merecedor de nossa atenção, porque, na verdade, até os Papistas professam ser justificados pela fé, mas isso é somente meia verdade; o restante da pintura é o que a destrói por completo. Certamente, eles estão persuadidos do fato de que o homem não pode ser considerado justo diante de Deus a menos que Jesus seja o mediador e que esta pessoa descanse nele para a salvação. Os Papistas sabem disso muito bem, e ainda assim dizem freqüentemente: “Nós somos justificados pela fé, mas não pela fé somente”. Este é o ponto do qual eles tomam por encerrado, e esta é a questão principal sobre a qual diferimos. Paulo, entretanto, mostra a tolice deles quando diz: “mas pela fé”, pois essa expressão implica que tudo quanto os homens tragam para Deus para agradá-lo é rejeitado. A porta, portanto, está bem fechada para todo mérito, pois Paulo declara que o único caminho para se chegar até Deus é através da fé. Em breve veremos com mais clareza porque Paulo faz uma comparação com a lei como se aqui estivessem dois opostos. A lei pressupõe que se cumprirmos o que Deus requer de nós, seremos considerados bons servos e ele nos dará a recompensa que prometeu; fé, por outro lado, pressupõe que somos pobres e perdidas almas condenadas que encontraram em Jesus Cristo o que desesperadamente precisavam.

Tome isso como um exemplo: existem dois homens procurando comida e abrigo. Um tem dinheiro e deseja ser tratado de acordo com seus recursos. Ambos pedem algo para comer, mas o segundo homem é pobre e não tem um centavo, por isso ele implora por uma esmola. Eles têm algo em comum, pois ambos buscam por comida, mas o primeiro possui dinheiro para satisfazer seu anfitrião. Assim, após comer e beber bastante e ser cortezmente entretido, o anfitrião se alegrará em receber seu pagamento, não pensando, todavia, que seu convidado esteja de alguma forma em dívida com ele. Por quê? Bem, ele se satisfez e ainda ganhou algo com isto. Mas a vida do homem pobre, que pede esmolas, depende de alguém que possa lhe dar alimento e abrigo, sem receber nada em troca. Da mesma maneira, se buscarmos ser justificados pela lei, deveremos merecer esta justificação; pois então Deus receberá de nós e nós dEle de forma recíproca. É possível uma coisa dessas? De maneira alguma, como examinaremos em mais detalhes posteriormente. Devemos, portanto, concluir que não podemos obter justificação pela lei, e se cremos que podemos fazer de Deus nosso devedor, só provocaremos Sua ira. A única opção é nos aproximarmos como pobres mendigos, para que possamos ser justificados pela fé. Não como se a fé fosse uma virtude que procede de nós, mas devemos chegar humildemente, confessando que não podemos obter salvação, exceto como um dom gratuito. É por isso, então, que a lei é colocada em oposição à fé. Paulo está nos mostrando que todos que afirmam ser aceitáveis por Deus por seus méritos, estão virando as costas para a graça do Senhor Jesus Cristo. Estudaremos isso demoradamente daqui por diante.

Um homem pode levantar esta objeção: a lei foi dada por Deus, portanto ela não pode ser colocada em oposição à fé, a qual também procede de Deus. A resposta para isso é simples. Deus fez ambos, dia e noite, água e fogo, frio e calor. Certamente, o dia não está em oposição à noite, mas Deus em sua bondade e sabedoria dispôs para que eles aparecessem em uma ordem adequada; o homem tem o brilho do sol no qual faz seu trabalho durante o dia, e a noite o sol se esconde para que o homem possa descansar. Portanto, embora o dia difira da noite, não há desarmonia entre eles. O mesmo se aplica ao fogo e à água. Cada criatura tem sua função – e o fogo e a água completam um ao outro muito bem; no entanto, se tivéssemos de misturá-los, certamente entrariam em choque! Isto é verdade para a lei e o evangelho. Aqueles que acreditam que somos justificados pela lei, bem como pelo evangelho, confundem tudo; é como se estivessem colidindo o céu com a terra! Em suma, seria mais fácil misturar fogo e água do que dizer que somos merecedores de uma porção da graça de Deus e ainda assim precisamos da ajuda do Nosso Senhor Jesus Cristo. Se considerarmos o que a lei é e porque ela foi dada, descobriremos que não há discrepância para com o evangelho, ou para com a fé, mas que há perfeita harmonia entre eles. Esta objeção é tratada assim: Se dissermos que ambos, fé e lei, procedem de Deus, estaremos certos. Mas devemos pensar um pouco (como faremos em breve) na razão pela qual Deus instituiu a ambas.

Voltemos as palavras de Paulo – ele diz que só podemos ser justificados pela fé no Senhor Jesus Cristo. Quando ele fala em justificação, ele se refere a sermos considerados justos aos olhos de Deus. Esta expressão precisa ser entendida porque trata de todo o assunto de como somos salvos. Nós certamente seriamos criaturas miseráveis se, tendo vivido uma longa vida neste mundo, alguém viesse nos perguntar o caminho da salvação e nós não soubéssemos responder! Muitos tolos têm se deleitado como o pão de Deus sem saber como ser aceitável a ele. É por isso que devemos estar totalmente atentos ao que Paulo está nos dizendo aqui. Ele diz que somos justificados. Como? Já somos justos – estamos sem culpa? De maneira alguma, mas Deus nos aceita. A palavra “justificação” aponta para aquele favor de Deus, o qual recebemos quando nos tornamos seus filhos e ele nosso Pai. Você pode perguntar: por que as Escrituras usam a palavra “justificar”, quando isto parece tão inapropriada? Nós poderíamos dizer muito bem que Deus nos ama, que ele tem pena de nós, que deseja ser nosso Pai e Salvador – por que não usarmos essas expressões ao invés de falar de justificação? As Escrituras não se referem a ela sem uma boa razão.

Se analisarmos a salvação em seu sentido mais básico, diremos que somos salvos pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo. No entanto, isso não implica no conhecimento de nossa condição miserável por natureza ou do remédio que necessitamos aplicar. Pois, para colocarmos nossa confiança em Jesus Cristo, devemos reconhecer que pelo pecado de Adão, bem como por nossas próprias iniquidades, estamos totalmente perdidos. Já deveríamos ter descoberto isto por nós mesmos. Nunca entenderemos que nossos pecados nos condenam aos olhos de Deus, a menos que saibamos que precisamos ser justificados com ele. Em outras palavras, não estaremos cientes da justificação de Deus se simplesmente dissermos: “Somos salvos pela graça e pela fé”. Pois Deus não pode condenar a si mesmo algum dia, desde que ele é a personificação da justiça; ele é totalmente puro e perfeito e, portanto, detesta o que é mau. Todavia, somos totalmente corrompidos e só existe maldade em nós; segue-se, assim, que Deus tem que nos odiar. Portanto, se ele nos odeia, ai de nós, pois estamos condenados. É por isso que precisamos ser justificados antes que possamos ser agradáveis a Deus. Isto significa que devemos ser purificados de nossos pecados e transgressões; caso contrário, jamais poderíamos apreciar a misericórdia de Deus (como tenho dito). Se reconhecermos que somos pecadores, perceberemos que Deus odeia o pecado, e ainda bem que ele o odeia ou de outra forma jamais teria providenciado um meio para nos salvar – pelo perdão de nossos pecados e pela limpeza e purificação através do sangue do Senhor Jesus Cristo, que nos dá limpeza espiritual. Deus nos lava e purifica para que possa nos receber, e então compartilha do seu amor, para que possamos ter a certeza da nossa salvação. É por isso que as Escrituras usam a palavra “justificação”.

Os Papistas podem debater sobre seu significado como animais tolos. “O que!”, dizem eles, “justificados pela fé? A fé não faz uma pessoa perfeita – como, então, pode ela nos justificar?” Eles não percebem que a justificação, da qual a Escritura fala, se refere ao ato de Deus cobrir os nosso pecados (como tenho dito) e, em virtude de sua morte e sofrimentos, cancelando-lhes em nome, e pelo nome, do Senhor Jesus Cristo. O que quer que outros possam dizer, está escrito que somos considerados justos aos olhos de Deus quando ele cancela e perdoa os nossos pecados. De fato, Paulo fala disso no quarto capítulo aos Romanos, onde diz: “Assim como Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos” (Rm 4:6-7; Sl 32:1). Novamente, em outra passagem ele diz: “Pois ele o fez pecado por nós, aquele que não conheceu pecado”; (isto significa que ele recebeu toda a condenação devida a nós por nossos pecados), “para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Cor 5:21). Assim, nós, sendo ligados e unidos a sua pessoa e seu corpo, somos considerados justos, porque sua obediência era tão perfeita que foi suficiente para limpar e remover os nossos pecados. Temos tratado agora com o significado do termo “justificação”.

Voltando nossa atenção para a expressão “fé”, Paulo afirma aqui que eles Têm “crido” em Jesus Cristo. Se perguntássemos para um tolo o que ele considera ser fé, ele poderia muito bem dizer: “Crença”, mas ele não poderia entender claramente o que cada palavra significa. Estamos felizes de sermos tão ignorantes como tais tolos? Vamos, em primeiro lugar, salientar que o Senhor Jesus é o objeto de ambas, nossa fé e nossa crença. A salvação é pela fé? Sim, se cremos no Senhor Jesus Cristo. Vamos considerar por um momento o porque do Senhor Jesus Cristo ser colocado diante de nós como aquele em quem devemos descansar toda a nossa fé. É simplesmente porque encontramos nele tudo o que precisamos para nossa justificação. Já temos dito que somos considerados justos aos olhos de Deus quando ele perdoa nossos pecados e já não os leva em consideração. E como isso acontece, se não pelo sangue do Senhor Jesus Cristo que foi derramado para nossa purificação? Por sua morte e sofrimentos, pelos nossos pecados, ele satisfez e apaziguou a ira de Deus contra nós. Não devemos buscar por alguma outra coisa que possa ajudar no pagamento, além do sacrifício feito pelo Filho Unigênito de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é chamado Filho amado de Deus (Mt 3:17), para que então possamos ser amados nele; ele é chamado o Justo (Is 53:11), para que possamos participar de sua justiça; e ele é chamado o Santo (Lc 1:35), para que possamos ser santificados nele. É por isso que nossa atenção é atraída ao Senhor Jesus Cristo quando consideramos a “fé”.

No entanto, os Papistas formam suas próprias opiniões sobre o assunto, revelando por aquilo que afirmam que jamais experimentaram o que significa crer. “O quê?” Eles dizem, “é possível para um homem ser justificado pela fé somente, visto que até os próprios demônios crêem?” Isto é verdade, e Tiago usa este argumento (Tg 2:20); de qualquer modo, nós também o vemos desdenhar aqueles que em vão e frivolamente diziam ser cristãos e ter fé, e ainda assim não mostravam frutos. Os Papistas tem se afastado ainda mais, na medida em que dizem que fé significa acreditar em Deus, e que o tema da nossa fé é Deus, quando por fé eles quer dizer uma mera imaginação de que há um Deus em algum lugar que criou o mundo e que agora o controla. Eles permanecem neste ponto, dormindo em sua ignorância, e ainda não exitando em chamar a si mesmos bons cristãos e bons católicos, como dizem, apesar de serem completamente ignorantes. Portanto, não devemos nos surpreender se, desprovidos de discernimento ou inteligência, eles lutem contra a doutrina contida na Sagrada Escritura, ou quando negam, com incorrigível obstinação, que o homem é salvo pela fé somente. Quão cuidadosamente, entretanto, devemos prestar atenção as palavras de Paulo aqui, as quais nos dizem que se não olharmos para Jesus Cristo, não podemos saber o que a fé realmente é. Sem ele, não podemos conhecer a remissão de pecados, como nos aproximarmos de Deus, como colocarmos nossa confiança nele, ou recorrer a ele. Nem saberemos o que é ter paz de consciência, ou esperança de vida eterna. Tudo isto está além do nosso alcance até sermos apresentados a Jesus Cristo e até termos olhado para ele e nos lançado sobre ele. Este tipo de fé traz a graça. Quando reconhecemos que somos criaturas miseráveis e abomináveis aos olhos de Deus, buscando o remédio no Senhor Jesus Cristo. Temos de aceitar que ele se ofereceu por nós a fim de nos redimir da maldição sob a qual vivíamos, e que nos lavou em seu sangue. Pela sua obediência, ele cancelou todas as nossas transgressões, para que pudéssemos ter a garantia de que Deus nos aceita e recebe como seus filhos. É assim que podemos entender essa passagem.

Tendo declarado que ele, e todos os Judeus que haviam se convertido ao Cristianismo e sido salvos pela fé no Senhor Jesus Cristo, Paulo acrescenta o seguinte: “Pois pelas obras da lei nenhuma carne será justificada”. Temos ouvido isso antes, em aplicação aqueles de sua própria nação, mas aqui ele o proclama em um sentido mais geral para o mundo todo. Quando ele diz “nenhuma carne”, ele basicamente informa que não há diferença entre Judeus e Gentios quando se trata do caminho da salvação. Embora os Judeus tivessem sido circuncidados, escolhidos como a herança de Deus e santificados por ele, entretanto, não podiam ter esperança de salvação senão pela pura graça de Deus. Veja como eles são colocados no mesmo nível dos Gentios, possuindo o mesmo status. Paulo busca expelir todo orgulho que os homens possam ter acerca de suas próprias virtudes. Na verdade, muitos de nós reconhecemos ser tão depravados que é impossível atribuir qualquer honra a nós mesmos, como se não merecêssemos qualquer coisa da mão de Deus. Aqueles que são bêbados ou devassos, ou aqueles que têm se lançado sobre toda sorte de males, sentem-se envergonhados de mais para se elevarem ou vangloriarem de poder persuadir a Deus a salvá-los por seus méritos ou boas obras. De fato, eles se escondem até mesmo das outras pessoas por causa da vergonha de sua infâmia. Mas os fanáticos, que fazem um show de sua “santidade” perante os homens, são tão endurecidos que enganam a si mesmos pensando serem merecedores do paraíso – como se Deus estivesse em dívida para com eles! Esses hipócritas, embora totalmente depravados e cheios de ambição, avareza, perversidade e coisas semelhantes a estas, por causa de todas as suas manipulações e pretensões, crêem que Deus não vê nada de errado em suas práticas corruptas e até persuadem a si mesmos de que ele os aceitará por seus méritos! Aqueles que regularmente freqüentam a missa, correndo da cervejaria para a capela, comprando indulgências e coisas semelhantes, observam jejuns e dias de festa1 – eles estão cheios de orgulho vão e acreditam que Deus lhes deve algo. Ao dizer “nenhuma carne”, Paulo declara que é inútil nos separarmos uns dos outros aqui em baixo, como se um fosse justo e outro injusto. Devemos todos nos humilhar e julgar a nós mesmos, sabendo que todas as nossas virtudes são meros trapos de imundície aos olhos de Deus, até o melhor que possamos fazer. Pois mesmo que um homem fosse perfeitamente justo em nossa opinião, por nunca ter feito mal a ninguém, ou porque pudesse resistir toda sorte de males sendo casto e sóbrio – em suma, posto que fosse reputado como sendo um anjo – ainda assim, não haveria nada além de corrupção. Como isto é possível? Bem, nunca devemos julgar pela aparência, pois nem tudo o que reluz (como diz o provérbio) é ouro. Nunca podemos julgar o que é pecado ou virtude sem primeiro olhar para dentro. Pois se um homem não atribui a Deus o que por justiça é dele, não estará roubando a homens de suas honras, mas a Deus. Assim, embora muitos homens possam louvá-lo e elogiá-lo, estão cheios de orgulho e ambição, e nada os humilhará exceto vir a conhecer o Senhor Jesus Cristo.

Então, mesmo aqueles que apresentam uma boa aparência exterior de religiosidade, devem ser condenados diante de Deus. Por isso, Paulo pretende impedir os homens de confiarem em seus próprios méritos. Porém, existe algo mais ainda. Quando ele diz “nenhuma carne”, não está se referindo apenas aos homens a quem Deus tem reprovado, os que não foram renovados pelo Espírito Santo, mas ele também inclui os crentes. Pois, embora o Espírito de Deus habite em nós, após ter nos levado a um conhecimento do Evangelho e ter nos enxertado no corpo do Senhor Jesus Cristo – embora, eu diga, o Espírito de Deus habite em nós, estamos todos incluídos nessa palavra “carne” por causa do que nós somos por natureza. Assim, quando Paulo declara aqui que “nenhuma carne será justificada”, ele quer dizer que os incrédulos são condenados em Adão e permanecem condenados, e que os crentes, pelo fato de que serão sempre imperfeitos e possuírem muitos obstáculos e manchas, estão condenados tanto quanto os outros. Na realidade, esta condenação é geral, pois quem quer que busque ser justificado pelas obras da lei encontrará sempre a si mesmo na condição de culpado – sim, até a pessoa mais santa que já tenha existido. Vamos tomar Abraão como um exemplo de perfeição, ou Davi, que abundava em todas as virtudes, ou Noé, Jó e Daniel, a quem Ezequiel nomeia como sendo três homens justos (Ez 14:14). Eles todos caem na mesma categoria como homens que só poderiam ser justificados aos olhos de Deus através da graça.

Agora então, pergunto a todos vocês: onde nós estamos? Aqueles que dizem que serão justificados por seus méritos, ou “obras meritórias” como eles as chamam, não têm sido conduzidos ao orgulho excessivo pelo Diabo? Pois quem pode igualar Davi, ou Noé, ou Abraão, ou Daniel? Certamente, até aqueles que têm cursado bem a escola de Deus, e que foram incendiados por um verdadeiro zelo de entregarem-se a si mesmos totalmente para Deus, estão convencidos de que ainda estão longe de alcançar o padrão estabelecido por Davi, ou até mesmo Noé ou Daniel! Sabendo disso, portanto, podemos ver que o Espírito Santo está aqui derrubando aqueles que se exaltam demasiadamente, para nos convencer de que não possuímos nem a menor gota de justiça, para que busquemos tudo que diz respeito a nossa salvação na graça do Senhor Jesus Cristo. Agora entendemos o que implica a declaração, quando diz que “nenhuma carne será justificada”. É como se Paulo estivesse dizendo que, quando se trata de nossa natureza, somos sempre maus por dentro, apesar do que pareça apresentar o exterior. Podemos ser grandemente louvados e respeitados pelo mundo; podemos estar cercados de vã bajulação; mas até que Deus trabalhe em nós para nos mudar, estaremos cheios de imundície. Na verdade, todas as virtudes que os homens exaltam são nada menos que vícios que os levarão a destruição e os mergulharão no inferno. Pois até mesmo aqueles que foram renovados pela graça de Deus, e aprenderam a obedecer-lhe, fazendo as coisas que Deus ama e aprecia, até eles não podem trazer nada para Deus que possa liquidar suas contas com ele. Eles estarão sempre em débito por conta de todos os bons dons que têm recebido de Deus; até tais homens também estão corrompidos pelo pecado e a fragilidade. Assim, devemos nos despir de toda confiança em nossa justiça própria. Pois, desde o maior ao menor, estamos todos condenados. Se buscarmos justificação pela lei, estaremos grandemente enganados – nunca a encontraremos.

Agora podemos entender mais claramente a verdade do que tenho dito a respeito do Senhor Jesus Cristo como um refúgio para aqueles que estão convencidos de sua necessidade espiritual. Isto quer dizer que a única real preparação para crer em Jesus Cristo é ser tocado como uma real e vívida consciência de nossos pecados. É por isso que Cristo disse: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei... e achareis descanso para as vossas almas” (Mt 11.28-29). Em outra parte, a Escritura diz claramente que ele foi enviado “para pregar boas novas aos mansos... para proclamar libertação aos cativos, e abertura de prisão aos presos” (Is 61:1). Portanto, aqueles que têm prazer em seus pecados nunca virão ao Senhor Jesus Cristo. Eles podem se vangloriar de possuírem fé, pois muitos dos escarnecedores de Deus profanam esta palavra, santa como ela é. Todo mundo deseja ser visto como um cristão, e não importa quão depravados eles estejam, dirão que crêem tanto quanto qualquer outro. Mas quando um homem fala dessa maneira, é evidente o bastante que ele não têm uma única gota de fé. Quando verdadeiros crentes dizem “eu creio”, eles o expressam em grande fraqueza, sabendo que se Deus não tivesse se apiedado deles, até o pouco que eles tivessem seria tirado deles. Aqueles que espalhafatosamente ostentam possuir plena fé são nada mais que cães e porcos, que jamais provaram, nem ao menos uma vez, a verdadeira religião, nem o temor de Deus. O termo “fé” sempre será vergonhosamente contaminado por tais cães, que não fazem outra coisa senão desprezar a Deus. Eles não podem discernir entre o bem e o mal, e são tão tolos a ponto de chafurdar em seus próprios pecados. Tome um bêbado, por exemplo, que está sendo envergonhado; depois de beber em excesso, ele anseia por permanecer em seu estado de embriaguez. Há também os devassos, perjúrios, blasfemos e similares – os quais afirmam ter fé; mas, por tudo isso, é certo que eles não estão prontos para conhecer o Senhor Jesus Cristo.Por que não? Porque eles não percebem que só podem ser justificados pela graça. Lembremos-nos, contudo, que para sermos completamente convencidos de que não podemos ser justificados pela lei, devemos ter Deus diante de nós em seu trono de julgamento a nos convocar a sua presença todas as manhãs e noites, sabendo que devemos prestar contas de toda a nossa vida. Além disso, devemos perceber que seríamos enviados a sepultura cem mil vezes se Deus não tivesse piedade de nós e nos ressuscitasse em sua misericórdia. Então saberíamos que não podemos ser justificados pela lei, pois estamos todos debaixo da condenação cada vez que nos comparamos com Deus. Precisamos ter esse medo, que não podemos encontrar descanso até o Senhor Jesus Cristo nos ter salvado. Veja, portanto, quão bom é para nós estarmos sobrecarregados, isto é, para odiarmos nossos pecados e estarmos tão angustiados acerca deles, como se sentíssemos que estivéssemos rodeados pelas dores da morte, para que possamos então buscar a Deus para que ele possa aliviar o nosso fardo. Devemos, no entanto, buscá-lo sabendo que não podemos obter salvação, completa ou parcialmente, a menos que nos seja concedida como um dom. Paulo não está dizendo que podemos encontrar alguma coisa que nos falta em Jesus Cristo, e suprir o resto por nós mesmos. Ele diz que não podemos ser considerados justos por nossos próprios méritos ou obras, mas somente através da fé.

Entendamos, por tanto, que não há qualquer salvação fora de Jesus Cristo, pois ele é o começo e o fim da fé, e ele é tudo em todos. Continuemos em humildade, sabendo que só podemos trazer condenação sobre nós mesmos; portanto, precisamos encontrar tudo o que diz respeito a salvação na pura e gratuita misericórdia de Deus. Devemos ser capazes de dizer que somos salvos mediante a fé. Deus o Pai designou seu Filho, o Senhor Jesus Cristo, para que ele pudesse ser ambos, o autor e consumador da nossa salvação. Devemos negar a nós mesmos e nos doar-mos a ele total e completamente, para que todo o louvor pertença a ele.

Agora, vamos cair diante da majestade do nosso grande Deus, reconhecendo nossos pecados, e pedindo que ele nos faça cada vez mais conscientes deles, que possamos odiá-los mais e mais, e crescer em arrependimento (uma graça que precisamos exercer por toda nossa vida). Possamos aprender, portanto, a magnificar a sua graça, como ela nos é mostrada no Senhor Jesus Cristo, para que possamos ser completamente tomados por ela; e não apenas de lábios, mas colocando nossa inteira confiança nele. Que possamos crescer nesta confiança até estarmos recolhidos em nossa morada eterna, onde receberemos a recompensa da fé. Possa ele não somente nos conceder esta graça, mas para todos os povos, etc.

1 Dias santos comemorados pelo catolicismo [nota do tradutor].

(Tradução: Nelson Ávila; título original: “Justification is by Grace Alone”)

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